quinta-feira, 23 de abril de 2009

O Tombo

I. Uma queda principia

Caía a grande velocidade, sem nunca conseguir ver, naquele instante de tempo, alguma das pedras que saltavam e rodavam com o impacto do seu corpo no terreno poeirento e duro, caía e, por entre os trambolhões repetidos, perguntava-se o porquê daquele tombo, daquela queda vertiginosa, não sabia se o haviam empurrado nem sequer de onde tinha caído, se lhe perguntassem de onde tinha vindo, qual era a sua história, ele responderia que não tinha noção de algum dia ter vivido antes destes trambolhões. O seu corpo era enrolado por forças que se sabe existirem mas que raramente se experienciam daquela forma, velocidade aliada a gravidade e uma tremenda de uma queda mal caída, de beiço no chão, sem aviso prévio nem um instante para se poder preparar, nada, tombou logo ali, naquele momento em que, procurava lembrar-se enquanto rebolava pela terra fora, tinha ou não sido empurrado. E se tinha, de facto, sido empurrado, quem o havia feito? Porquê? Buscava na sua memória qualquer rolo perdido onde tal pessoa pudesse figurar, mas não se conseguia lembrar do tempo anterior ao tombo. Nasci aqui, pensou, nesta queda, deste tombo, porventura encontrando, se tal era possível, algum sentido para a existência concretizada através de um trambolhão. E, no entretanto, continuava a rebolar, parecia interminável o movimento, as moções circulares repetidas desmedidamente. O seu corpo impactado contra o chão era festim para as pedras e a sua cabeça, de cada vez que batia no chão, doía-lhe por todas as anteriores. Era um sofrimento que não acabava. E ele sem lembrar-se de nada. Por sorte, chamemos-lhe assim, um pedregulho mais consistente no caminho chocou com a sua cabeça, ou o contrário, e houve uma espécie de flashback, um instante demorado de imagens, de passado, quem saberá, de pessoas, de espaços, de vida.



quinta-feira, 16 de abril de 2009

Do Amor e da Morte

(...) Ainda junto da janela, com a coberta enrodilhada aos pés, o jovem fitava-a. Estava nu e fitava-a.
- Esperava por ti, se quisesses.
Baixou os olhos. Sorriu triste:
- Nem vais ao menos à camioneta, querido?
Ele fez-lhe que sim com a cabeça.
Mas não foi. Ficou especado atrás do estore, seguindo-a com a vista a atravessar a praça, lá em baixo. Depois vestiu-se à pressa e pagou o quarto. Não quis o troco, que diabo, atirou-se pelas escadas estreitas a toda a pressa, e só parou cá fora, na esplanada.
- Uma aguardente velha. Copo grande.
O rádio transmitia uma cançoneta e fazia ruídos. Uma cançoneta francesa, parece que era.
- Está bem assim?, perguntou o criado, a apontar o cálice vazio.
- Está bem, qualquer coisa. A que horas é a camioneta?
- Agora parece-me que só lá prás dez. Dez, dez e tal.
O criado serviu a aguardente. Ia a afastar-se quando o rapaz o segurou pelo braço, esvaziando o cálice duma golada.
- Dez horas, disse?
- Sim. Não sei bem a hora certa a que ela parte mas lá dentro já me dizem.
- Espere. Deixe, não vale a pena. Obrigado.
- Mas não me custa nada, senhor. Há um horário lá dentro, no balcão. Outro cálice?
- Deixe lá, não vale a pena perguntar. O que há-de ser agora? Madeira. Tem vinho da Madeira?
- Não sei, senhor. Mas não poderá ser Porto?
- Está bem, seja o que for. Traga então Porto.
- Cálice grande, não é assim?
- Sim, cálice grande.
Acendeu um cigarro e olhou à volta, as cadeiras, as mesas de ferro, o hotel à esquina do passeio, e a janela do quarto do primeiro andar. Os olhos ficaram-se-lhe ali, naquele estore verde ainda corrido, nas paredes peladas à volta das vidraças.
E quando o criado voltou, disse-lhe para não deitar, tapando o cálice com a mão.
- É Reserva. Muito forte, faça favor de ver.
O homem continuava a apontar o rótulo da garrafa mas ele nem sequer o olhou.
- O senhor experimente que vai ver. Reserva, com mais de dez anos de casa e muito mais forte que o Madeira. Faz favor...
- Não. Leve isso. Traga-me antes um café quente.
Parecia recitar, falando sem despegar os olhos do outro lado da praça. Olhava a janela e tinha o cigarro esquecido nos dedos.
- Um café forte, continuou. Preciso de ter a memória viva...
Virou-se, mas o criado já ali não estava.

José Cardoso Pires, "Week-End" in Histórias de Amor


(...)
- O médico foi claro. Havia um relógio na secretária e olhei as horas. Eram cinco precisas. Estava calmo e reparei. Tenho dois ou três meses no máximo. O tempo contado dia-a-dia. É extraordinário como tudo agora me parece diferente. Mais belo talvez. Creio que vou viver agora mais intensamente. Dia-a-dia. E três meses no máximo.
- Espera! Três meses como? - disse a rapariga, subitamente iluminada.
Pôs-lhe a mão no braço e olhava-a fixamente. Ele olhou-a também e ambos ficaram a tentar entender-se em silêncio. Depois ela tirou a mão do braço do rapaz e acendeu novo cigarro. O sol escorria do alto e inundava-lhe agora a mesa toda. O rapaz tomou o copo e bebeu um gole devagar.
- Diz outra vez - repetiu a rapariga - Deixa-me entender. Diz outra vez, para entender tudo muito bem.
- Tu vais dizer que tudo isto é estúpido e eu sei bem que é. Mas se a gente pensar bem, a estupidez é só nossa.
- Sim. Mas explica tudo muito bem. Desde o princípio. Devagarinho.
- A estupidez é só nossa, porque a vida não é verdade. Mas é a única coisa em que se acredita - disse o rapaz.
- Sim - repetiu a rapariga - Mas era bom que explicasses desde o princípio. Devagarinho. Para eu não acreditar também. Está um dia cheio de sol.
- Mas a explicação é simples - disse ele, balouçando o líquido no fundo do copo. Eu vou explicar tudo. Eu vou.
Estava uma tarde cheia de sol. As águas brilhavam até ao limite do horizonte, um barco à vela ia passando pela estrada de lume. O ar estava quente. E a brisa do mar quase não chegava ali.

Vergílio Ferreira, "Uma Esplanada sobre o Mar" in Contos

terça-feira, 7 de abril de 2009

Pelo fogo adentro

Deus chora porque não sabe morrer.