(...) Ainda junto da janela, com a coberta enrodilhada aos pés, o jovem fitava-a. Estava nu e fitava-a.
- Esperava por ti, se quisesses.
Baixou os olhos. Sorriu triste:
- Nem vais ao menos à camioneta, querido?
Ele fez-lhe que sim com a cabeça.
Mas não foi. Ficou especado atrás do estore, seguindo-a com a vista a atravessar a praça, lá em baixo. Depois vestiu-se à pressa e pagou o quarto. Não quis o troco, que diabo, atirou-se pelas escadas estreitas a toda a pressa, e só parou cá fora, na esplanada.
- Uma aguardente velha. Copo grande.
O rádio transmitia uma cançoneta e fazia ruídos. Uma cançoneta francesa, parece que era.
- Está bem assim?, perguntou o criado, a apontar o cálice vazio.
- Está bem, qualquer coisa. A que horas é a camioneta?
- Agora parece-me que só lá prás dez. Dez, dez e tal.
O criado serviu a aguardente. Ia a afastar-se quando o rapaz o segurou pelo braço, esvaziando o cálice duma golada.
- Dez horas, disse?
- Sim. Não sei bem a hora certa a que ela parte mas lá dentro já me dizem.
- Espere. Deixe, não vale a pena. Obrigado.
- Mas não me custa nada, senhor. Há um horário lá dentro, no balcão. Outro cálice?
- Deixe lá, não vale a pena perguntar. O que há-de ser agora? Madeira. Tem vinho da Madeira?
- Não sei, senhor. Mas não poderá ser Porto?
- Está bem, seja o que for. Traga então Porto.
- Cálice grande, não é assim?
- Sim, cálice grande.
Acendeu um cigarro e olhou à volta, as cadeiras, as mesas de ferro, o hotel à esquina do passeio, e a janela do quarto do primeiro andar. Os olhos ficaram-se-lhe ali, naquele estore verde ainda corrido, nas paredes peladas à volta das vidraças.
E quando o criado voltou, disse-lhe para não deitar, tapando o cálice com a mão.
- É Reserva. Muito forte, faça favor de ver.
O homem continuava a apontar o rótulo da garrafa mas ele nem sequer o olhou.
- O senhor experimente que vai ver. Reserva, com mais de dez anos de casa e muito mais forte que o Madeira. Faz favor...
- Não. Leve isso. Traga-me antes um café quente.
Parecia recitar, falando sem despegar os olhos do outro lado da praça. Olhava a janela e tinha o cigarro esquecido nos dedos.
- Um café forte, continuou. Preciso de ter a memória viva...
Virou-se, mas o criado já ali não estava.
- Esperava por ti, se quisesses.
Baixou os olhos. Sorriu triste:
- Nem vais ao menos à camioneta, querido?
Ele fez-lhe que sim com a cabeça.
Mas não foi. Ficou especado atrás do estore, seguindo-a com a vista a atravessar a praça, lá em baixo. Depois vestiu-se à pressa e pagou o quarto. Não quis o troco, que diabo, atirou-se pelas escadas estreitas a toda a pressa, e só parou cá fora, na esplanada.
- Uma aguardente velha. Copo grande.
O rádio transmitia uma cançoneta e fazia ruídos. Uma cançoneta francesa, parece que era.
- Está bem assim?, perguntou o criado, a apontar o cálice vazio.
- Está bem, qualquer coisa. A que horas é a camioneta?
- Agora parece-me que só lá prás dez. Dez, dez e tal.
O criado serviu a aguardente. Ia a afastar-se quando o rapaz o segurou pelo braço, esvaziando o cálice duma golada.
- Dez horas, disse?
- Sim. Não sei bem a hora certa a que ela parte mas lá dentro já me dizem.
- Espere. Deixe, não vale a pena. Obrigado.
- Mas não me custa nada, senhor. Há um horário lá dentro, no balcão. Outro cálice?
- Deixe lá, não vale a pena perguntar. O que há-de ser agora? Madeira. Tem vinho da Madeira?
- Não sei, senhor. Mas não poderá ser Porto?
- Está bem, seja o que for. Traga então Porto.
- Cálice grande, não é assim?
- Sim, cálice grande.
Acendeu um cigarro e olhou à volta, as cadeiras, as mesas de ferro, o hotel à esquina do passeio, e a janela do quarto do primeiro andar. Os olhos ficaram-se-lhe ali, naquele estore verde ainda corrido, nas paredes peladas à volta das vidraças.
E quando o criado voltou, disse-lhe para não deitar, tapando o cálice com a mão.
- É Reserva. Muito forte, faça favor de ver.
O homem continuava a apontar o rótulo da garrafa mas ele nem sequer o olhou.
- O senhor experimente que vai ver. Reserva, com mais de dez anos de casa e muito mais forte que o Madeira. Faz favor...
- Não. Leve isso. Traga-me antes um café quente.
Parecia recitar, falando sem despegar os olhos do outro lado da praça. Olhava a janela e tinha o cigarro esquecido nos dedos.
- Um café forte, continuou. Preciso de ter a memória viva...
Virou-se, mas o criado já ali não estava.
José Cardoso Pires, "Week-End" in Histórias de Amor
(...)
- O médico foi claro. Havia um relógio na secretária e olhei as horas. Eram cinco precisas. Estava calmo e reparei. Tenho dois ou três meses no máximo. O tempo contado dia-a-dia. É extraordinário como tudo agora me parece diferente. Mais belo talvez. Creio que vou viver agora mais intensamente. Dia-a-dia. E três meses no máximo.
- Espera! Três meses como? - disse a rapariga, subitamente iluminada.
Pôs-lhe a mão no braço e olhava-a fixamente. Ele olhou-a também e ambos ficaram a tentar entender-se em silêncio. Depois ela tirou a mão do braço do rapaz e acendeu novo cigarro. O sol escorria do alto e inundava-lhe agora a mesa toda. O rapaz tomou o copo e bebeu um gole devagar.
- Diz outra vez - repetiu a rapariga - Deixa-me entender. Diz outra vez, para entender tudo muito bem.
- Tu vais dizer que tudo isto é estúpido e eu sei bem que é. Mas se a gente pensar bem, a estupidez é só nossa.
- Sim. Mas explica tudo muito bem. Desde o princípio. Devagarinho.
- A estupidez é só nossa, porque a vida não é verdade. Mas é a única coisa em que se acredita - disse o rapaz.
- Sim - repetiu a rapariga - Mas era bom que explicasses desde o princípio. Devagarinho. Para eu não acreditar também. Está um dia cheio de sol.
- Mas a explicação é simples - disse ele, balouçando o líquido no fundo do copo. Eu vou explicar tudo. Eu vou.
Estava uma tarde cheia de sol. As águas brilhavam até ao limite do horizonte, um barco à vela ia passando pela estrada de lume. O ar estava quente. E a brisa do mar quase não chegava ali.
- O médico foi claro. Havia um relógio na secretária e olhei as horas. Eram cinco precisas. Estava calmo e reparei. Tenho dois ou três meses no máximo. O tempo contado dia-a-dia. É extraordinário como tudo agora me parece diferente. Mais belo talvez. Creio que vou viver agora mais intensamente. Dia-a-dia. E três meses no máximo.
- Espera! Três meses como? - disse a rapariga, subitamente iluminada.
Pôs-lhe a mão no braço e olhava-a fixamente. Ele olhou-a também e ambos ficaram a tentar entender-se em silêncio. Depois ela tirou a mão do braço do rapaz e acendeu novo cigarro. O sol escorria do alto e inundava-lhe agora a mesa toda. O rapaz tomou o copo e bebeu um gole devagar.
- Diz outra vez - repetiu a rapariga - Deixa-me entender. Diz outra vez, para entender tudo muito bem.
- Tu vais dizer que tudo isto é estúpido e eu sei bem que é. Mas se a gente pensar bem, a estupidez é só nossa.
- Sim. Mas explica tudo muito bem. Desde o princípio. Devagarinho.
- A estupidez é só nossa, porque a vida não é verdade. Mas é a única coisa em que se acredita - disse o rapaz.
- Sim - repetiu a rapariga - Mas era bom que explicasses desde o princípio. Devagarinho. Para eu não acreditar também. Está um dia cheio de sol.
- Mas a explicação é simples - disse ele, balouçando o líquido no fundo do copo. Eu vou explicar tudo. Eu vou.
Estava uma tarde cheia de sol. As águas brilhavam até ao limite do horizonte, um barco à vela ia passando pela estrada de lume. O ar estava quente. E a brisa do mar quase não chegava ali.
Vergílio Ferreira, "Uma Esplanada sobre o Mar" in Contos