sábado, 27 de fevereiro de 2010

as ondas que sempre voltam

FRESTA

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

Fernando Pessoa

o olhar de uma criança

“Estilhaço”

O olhar de uma criança
Fitando um copo rachado
Água a escapar pela fenda
O olhar de uma criança
Descendo a ameaça de
Um alvo desenhado no seu rosto
Vê a serpente mordendo o vidro
O indicador de uma pálida mão incógnita
Abrindo-lhe os queixos avermelhados
O olhar de uma criança
Sabendo que terá de beber o veneno
Abre a boca com receio de um tiro
O corpo do réptil abraçando-lhe o pescoço
O olhar de uma criança
Sob o descolar de um avião
Ou apenas a sua passagem bombástica
O sobrolho franzido e resignado
Aceitando a cor do seu sangue
A mesma cor do veneno da guerra

in Frederico Rodrigues, Guerra

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

a ubiquidade da memória

"... puxa com as mãos o cobertor para o peito, para as barbas e o pescoço engelhado; sem ser capaz de dormir, olha a noite lá fora e a luz pela janela; olha tranquilo o sono e a vigília; sem pressa, sem nenhuma pressa; também não sonha; diz que não está já em idade de sonhar; não se lastima nunca do tempo que passou mas do que passa; vê os poentes e os círculos da tarde, enche o coração de uma alegria calma; dá ao silêncio o seu valor e não busca nos homens senão o que não sabem; ouve o vento distante e não se move; ao canto da açoteia sobre o tecto em que dorme, o vento faz de quando em vez girar num remoinho rápido uma porção de pó e de cotão com pétalas de malva e de roseira brava, restos de linhas com pedaços de pano e papel de jornal, a casca duma barata meio encarniçada no ventre e na base das patas como pentes, os anéis a dessoldar-se e a cabeça larga chata; o bom Moisés, de boca pregueada, nariz curvo de velho, molhado, rugas fundas por toda a face, dorme vestido, de ceroulas, camisa xadrez, meias sujas suadas, e recorda, desperto, sem querer: o silêncio da noite agora é grande, como quando ela morreu; a noite é morte, é a raposa velha; morreu um ano, nem sequer um ano, depois de nos juntarmos; os nove meses, foi aquela conta; albumina, disse o douor, o raio que o parta; o crianço veio morto, vil e cizento, de pescoço torcido; mas não interessava isso, desde que ela vivesse; eu sabia; tinha dez possibilidades de escapar, contra noventa; foi-se; pronto, não sofre, que havemos de fazer? uma noite como esta, deserta e aluada; quando ela morreu estávamos sós os dois, sós como quando amámos; ela deu um grito e em seguida um ai, contente, levezinho, resignado, quando rompi aquilo, nessa noite; não na outra; suava, tinha a cara alagada, cheia de febre, dores, se calhar pena de morrer; fiquei de todo abandonado; andei sem eira nem telha, como um bicho, não voltei a conhecer mulher, foi o diabo; então cá o morgado arranjou-me trabalho; cuidava dos cavalos e vivia-se; mas os cavalos rancolhos tiveram de ser vendidos, e o breque também; a cocheira ficou vazia, eu a dormir nela, verão e inverno, sem ninguém, sentindo a falta da mulher, de um corpo ao menos que nos meus achaques me valesse; hei-de morrer aqui em uma noite destas e só se lembram de mim ao fim do outro dia, ao darem pela minha falta à hora de jantar, quando eu estiver feito um carapau, lívido inteiriçado; na noite em que fugimos fomos para Vila Nova de Milfontes, aí trabalhei de marítimo durante todo o verão; foi um imenso verão; ela não tinha visto o mar, fechada na charneca entre azinheiras, disse que não sabia de o mar ser assim tanta água em moitão, e quando tivemos que atravessar a serra ela perguntou por que é que tinham feito uns cabeços tamanhos, que calhando estavam ali desde que mundo é mundo, desde que Deus Nóssenhor lhes deu amanho; calhando, pois, retorqui-lhe eu; o mar era qual se, à superfície, tivesse posta uma colcha de gaze, uma rede de pesca, em cujas malhas as ondas se afilassem; não me esqueço do mar; é como um espelho ou a eternidade; brilha, reflecte, fere e encandeia; a terra castanha e seca, casas, cercadas de planície; aí é que se sabe a soidade da sede ( e o homem da terra responeu e disse: semeio sempre até que o sono chegue mas a mulher anda de pingadêra e a ceia é velha, como a sede), Moisés sonhou ou passou-lhe aquela nuvem pela vista, deu-lhe uma tonteira e os sentidos a modos que lhe saíram da cabeça; as sobrancelhas pesam, grossas, sobre os olhos abertos; há uma vontade, nele, de regressos; na sombra da cocheira, com freios e estribos e selas de arção, a sua cara de malares e queixos salientes parece rir ou sorrir, mas recorda: devagar fomos para o cemitério; passámos pelos jazigos dos ricos, enfeitados, portas e janelas gradeadas, lamparinas, flores, seguimos para o alto, a parte pobre, onde o vento vinha pelo meio das ervas e desmoronava os torrões das covas rasas; aí, como eu um dia, aí foi que ela adormeceu para sempre."

Almeida Faria, A paixão.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Irritado de novo

A dificuldade em respirar irrita-me. Tal como me irrita a ansiedade social. E a aridez de Isla Vista. E eu mesmo.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

previsão de um certo modernismo

"E na sua face enrugada, através deste berro, lampejava sempre tanta indignação, que eu curvava os ombros, humilde, no arrependimento de ter afrontosamente ultrajado o Príncipe que tanto amava. Desventurado Príncipe! Com o seu dourado cigarro de Yaka a fumegar, errava então pelas salas, lenta e murchamente, como quem vaga em terra alheia sem afeicões e sem ocupações. Esses desafeiçoados e desocupados passos monótonos o traziam ao seu centro, ao gabinete verde, à Biblioteca de ébano, onde acumulara Civilização nas máximas proporções, para gozar nas máximas proporções a delícia de viver. Espalhava em torno um olhar farto. Nenhuma curiosidade ou interesse lhe solicitavam as mãos, enterradas nas algibeiras das pantalonas de seda, numa inércia de derrota. Anulado, bocejava com descoroçoada moleza. E nada mais instrutivo e doloroso do que este supremo homem do século XIX, no meio de todos os aparelhos reforçadores dos seus órgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu serviço as Forças Universais, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos séculos - estacando, com as mãos derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na face e na indecisão mole de um bocejo, o embaraço de viver!"

Eça de Queirós, A cidade e as serras.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

bang bang!

Sentindo-me culpado pela notória falta de sentido de moda desta senhora, gosto, no entanto, e bastante, desta canção. Ouço-a no autocarro que leva os alunos graduados e não só (eu incluído na secção pós-graduada) à cidade de Santa Barbara, desde quarta-feira até sábado. O autocarro é uma porcaria. A música boa. E ao que parece a M.I.A está a trabalhar com os Buraka. A cantora da banda portuguesa também não preza pelo modo de se vestir - mas a música não padece por isso. Faça-se, então, mais música boa e a moda que espere um pouco! ;)
M.I.A - "Paper Planes"

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

conhecer

"Por que não tentas ajudar-te?
Eu não quero ajudar-me.
Porquê?
Um dia talvez te diga.
A conversa seguia como se segue por um desvio, afastando-se do objectivo principal, tal como acontece, de resto, na maior parte das conversas. Ele sabia que extrair informação dela seria difícil, senão até impossível. Ela era quase imperscrutável, um porta fechada a sete e mais chaves, e ele só conseguia ver pelo buraco da fechadura, apenas podia observá-la através daquela pequena janela para o interior. Mas ele queria a todo o custo sabê-la, descobri-la, inteirar-se do que lhe ia na alma. Não lhe oferecia ajuda alguma, oferecia somente sugestões. Se ela se ajudasse a ela própria ou procurasse ajuda profissional ele iria finalmente conhecê-la, porque só se conhece a personalidade dos aflitos quando eles fazem por matar os insectos que lhes comem o sorriso.
Diz-me, já pensaste em psiquiatras, psicólogos, talvez?
Eu não preciso nem de uns nem de outros. Não.
Mas talvez eles te pudessem
Não podem nada. Por favor, não insistas.
Mas qual seria o mal?
Esse é o problema, não me faria mal nenhum.
Não sei se percebo o que dizes.
O mal que tenho é meu. O vazio que tenho dentro de mim é só meu. São as únicas coisas minhas, só minhas e de mais ninguém. Quero preservá-las acima de tudo.
Mas e se
São minhas. Afasta-te.
Ele levantou-se e ela saiu rapidamente. Ainda lhe sentiu o perfume doce e afiado como uma lâmina. Nunca iria conhecer aquela mulher. Só lhe sabia o mal e ela nunca o partilharia com ninguém."
Frederico Rodrigues, Quero-te na calada da
noite

domingo, 7 de fevereiro de 2010

a noite em Paris

leituras escritas

"Os moribundos corriam e bebiam água, descobrindo uma nova forma de vida - eu sabia que o ataque estava para breve. Aquela casa de deboche seria o primeiro alvo e eu não tinha maneira de avisar quem lá morava. (...) Levaram-no enquanto dormíamos. Aqueles sanguinários acéfalos tinham-no levado. E era hora de eu voltar a casa."
Frederico Rodrigues, Quero-te na calada da
noite
.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Odete

Ainda estou para saber por que razão a maior parte dos realizadores portugueses não entende a diferença entre o cinema e a literatura.

a receita do oblívio