sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O Acidente

Não se sentia o mesmo após o acidente. Nem mesmo com os meses largos que haviam corrido ou com a fúria de um torpedo ou com a placidez de uma ovelha. Não era a mesma pessoa. E nesse dia o mundo parecia prestes a fechar-se sobre o seu peito, como acontecia de quando em vez. Sentia saudades de quem tinha sido antes da queda no percurso, desse inocente Adão que passeava nu nos cafés e lia livros ao fim da tarde. Voltaste a ser quem eras, diziam-lhe as árvores, alheadas da verdadeira tormenta dentro de si. O certo é que as melhorias eram significativas, notórias, secundárias até, dado o nível de importância que os seus lhes davam e até mesmo ele, que gradualmente adquirira, enfim, capacidade de relativizar. Mas havia aqueles ataques súbitos, despoletados por um qualquer momento ou palavra traumáticos, havia os lugares, havia o fosso e o mato, o tempo e os fármacos. E nesse dia, à tarde, percorreu as ruas e dirigiu na cidade com a inquietude anatematizadora que lhe deixava a alma exangue. Os dias que lhe restavam antes que. Todas essas horas. E o tempo da vida deixava-se sempre sentir como um momento, uma fugaz sensação que permite résteas e arestas que se limam mais ou menos bem. Limpar os cantos à casa. Não, não era o mesmo desde o acidente. Porque não se lembrava da vida antes do acidente. Porque era tudo fragmentos de tinha sido, foi, seria, terá sido. E aí as portas do mundo principiarem em fechar-se e ele prestes a ser esmagado pelo existir, sofrido por demais pelo viver, perdidas que estavam tantas contas que lhe eram queridas. Mas o filme era por ele já sobejamente conhecido, mesmo que lhe custasse que decorridos que estavam tantos meses ainda houvesse manifestações sísmicas repentinas, sem aviso prévio, com ondulações e repercussões que intermitentemente espreitavam. E sentou-se no café, absorvendo toda a malícia e nuvem negra de ser, e pediu o lanche. Eugénia ligou-lhe, disse-lhe que gostava muito de continuar a trabalhar com ele, que sim. Impossível, Eugénia. E então Eugénia desejou-lhe as maiores felicidades e deixou as portas abertas para mais tarde, se mais tarde existisse, e ele sentiu verdade na voz de Eugénia. Uma brecha de luz. Eugénia. Um raio insuspeito. Veio Daniel, anjo de voz grave, e sentou-se com ele. A luz, tremendo, expandia-se ainda espandongada pelas trevas. O jantar. O cisma. Ganhava terreno a noite. Persistência da memória. O acidente. Continuava lutando, o rapaz, contra o que estava dentro de si. E porque o tempo. E porque a morte. E porque a falta de sentido. Continuou o serão e a voz do anjo, à sua frente, dizia-lhe um espelho. E veio Eva à chuva, lavando-se em lágrimas na despedida. O acidente. Mas a razão. Mas as pessoas. Mas o amor.