domingo, 26 de dezembro de 2010

a terceira rosa

Quando deu à luz o seu terceiro filho, Maria já não tinha preferência nem curiosidade pelo sexo do bebé, e quando lhe disseram que era uma menina o seu rosto não mudou de expressão. Segurou a recém-nascida nos braços e deixou os músculos cair devagar, afundando ainda mais o corpo na cama. Pensou na sua vida e no seu marido, nos deveres de mulher e na promessa de um céu depois da morte. E desejou morrer.

sábado, 4 de dezembro de 2010

1200


Pedia copo de vinho atrás de copo de vinho, um qualquer vinho caro. Sentado no sofá, fumava cigarros insistentemente, olhando as pessoas, sorrindo na escuridão daquele bar, sozinho, abandonado a si mesmo por seu próprio arbítrio. Sabia-lhe bem estar numa cidade desconhecida a gastar dinheiro que talvez não devesse gastar. Os seus amigos tinham saído para ver outros rostos, mas ele permanecera naquele sofá, esperando que as pessoas importantes iniciassem uma conversa que fosse. Sempre que lhe pediam para se sentarem ao lado de alguém no mesmo sofá ele acenava que sim e sentava-se mais para a direita ou mais para a esquerda. Estava no coração dos ricos daquela cidade, ele, tão deslocado e desamparado, sorria por encontrar conforto num estilo de vida que um dia queria que fosse o seu. Ao fim de uma hora alguém lhe perguntou o nome e o que fazia. Mentiu. Disse que se chamava qualquer coisa que não constava no seu passaporte e que era escritor. Que tinha publicado em revistas académicas e que estava a acabar um romance. Tinha de ser assim. Era uma cidade de actores e tudo era representação. Apetecia-lhe entrar no jogo. Ser quem era ali não teria relevância alguma. E o que procurava era relevância, encontrar pessoas dedicadas à fama e ao dinheiro. Queria ser um dandy. Nunca soube o que o sujeito que lhe perguntou o nome fazia, mas não parecia importante. Depois houve uma loura que o interpelou. Sentou-se a seu lado no sofá, as velas acesas e as pessoas que fumavam pareciam já não interessar, sentou-se e iniciou uma conversa. Era uma aspirante a jornalista. Estudava numa universidade privada naquela cidade. Tinha nascido no meio do estilo de vida rock. Ele não sabia exactamente o que ela queria dizer, mas exclamou que sim com falsa surpresa, que a admirava, que esperava que ela tivesse sucesso. Entretanto, o vinho continuava a vir e os cigarros eram fumados esfomeadamente. A rapariga desinteressou-se, pensou ele quando ela pediu licença para ir falar com um amigo.
Começou a observar minuciosamente as diversas raparigas e mulheres que fumavam cavaqueiramente, e também os rapazes e homens que, de pé, as acompanhavam. A sua mente fugia-lhe para um lugar que recentemente o havia invadido. Esse lugar era a hipótese de sexo com uma fêmea. Nunca o tinha feito, por falta de interesse físico e receio de não estar à altura das exigências. Pensou no seu pénis. Com uma determinada quantidade de álcool ingerida acreditava que poderia ter relações com quase tudo o que se mexesse. Gostava de pensar em si mesmo como uma pessoa extremamente sexual, e muitas vezes enrolava-se aos beijos e toques com raparigas desconhecidas. Acontecia quase exclusivamente em festas onde já ébrio se excitava com o leque de opções ao seu dispor. Era, diziam-lhe e ele próprio pensava assim, bastante atraente para ambos os sexos, e gostava de jogar com o seu sex-appeal. De facto, o flirt era a sua principal qualidade e mais desenvolvida capacidade, e era com rapidez, naturalidade e exotismo que exercia esse seu lado. Desenvolto que se considerava, o suficiente para não se achar tímido, era um jogador como tantos outros. Não porque fosse um sujeito cruel em querer excitar os outros e depois despedir-se sem mais um passo na direcção da consumação carnal ou algo que indicasse o convite para um encontro. Não, não era essa a razão. A verdade era que se alimentava um pouco da atracção que os outros sentiam por ele, mas isso apenas significava que ele procedia a uma autofagia que, não sendo destrutiva, era pelo menos desgastante e quiçá perigosa. Na maior parte das vezes sentia nojo e repulsa perante a perspectiva de um romance, de uma relação amorosa. Encontrava mais conforto nos braços de gente estranha por umas horas do que na possibilidade de amar e ser amado, de receber e retribuir gestos de cumplicidade todos os dias e sempre com a mesma pessoa. Por outro lado, muitas vezes sentia necessidade disso mesmo, de estabilidade, de uma ponte que estabelecesse um balanço correcto na sua vida gasta em horas tardias, sofredora em muitos dias. Mas ele considerava-se imaturo por demasiado, obcecado por natureza, egoísta no silêncio da desilusão de umas simples reticências numa mensagem. Não, não era amor que procurava naquele espaço e naquela cidade. Era o flirt, era o misturar-se com gente do meio que ansiava atingir, aquele meio onde o dinheiro abundava, as janelas dos carros eram escuras, e a cultura pop era ditada. Queria, assim, ser um ditador. De massas e de modas, de estilos e de sons, de filosofia e do espectáculo, do exibicionismo e do anonimato dos altos muros e dos óculos de sol. Sonhava sorrindo, sentado num dos sofás daquele bar, esperando que alguma das suas estrelas favoritas aparecesse e a oportunidade se desse para a conversa, a troca de impressões, a participação, nem que fosse momentânea, numa qualquer gravação ou ensaio.
Os copos de vinho e os cigarros sucediam-se uns atrás dos outros, e ele falava com as mais diversas pessoas que não conhecia, dizendo-se sempre escritor. Uma rapariga loura pediu-lhe um cigarro e quando ele lhe mostrou a marca que fumava, estrangeira para a jovem mulher, desconhecida para a sua nacionalidade, os olhos claros da figura esguia e certamente endinheirada propunham-lhe receio. Não sei se consigo fumar isto, se for muito forte, só costumo fumar quando bebo e nunca muito, ainda vou desmaiar. Se desmaiares eu seguro-te, respondeu-lhe ele, sem hesitação. O flirt, mais uma vez. Disseram-lhe que ela estaria possivelmente a fazer-se ao piso, expressão tão vulgar quanto as imagens que lhe passavam pela cabeça. Mas durante o resto da noite a mesma rapariga loura não enviou mais algum sinal que fosse, e ele desinteressou-se. Depois, conheceu um estilista australiano, alto, moreno, sotaque irresistível, blazer e calças impecavelmente combinados, estilista australiano que queria ir a Lisboa e que ficou com o seu número e e-mail. Contrariamente ao que esperava daquele sujeito, ele não jogava na sua equipa e não parecia muito empenhado em acompanhar e ouvir a conversa que ele, o rapaz perdido doze e cem vezes, tentava manter. Consequentemente, no anonimato da sua própria presença começou a sentir um desconforto inesperado, uma paulatina epifania que relegava a sua t-shirt original e cabelo e nacionalidade diferentes para um plano onde nunca seriam novidade nem motivo de curiosidade extremas. Viu-se uma vez mais sem alguém a conversar consigo. Continuava sorrindo, agora um pouco estupidamente, e, já bebido, seguia olhando em volta, perscrutando a sala com o olhar turvo.
Pouco tempo após essa repentina e repetida solidão voltavam os seus amigos. Não era ainda hora de ser um dos beautiful ones. Pagou a sua conta, tinha gasto mais do que devia sem no entanto se arrepender, e saíram, ele e os seus companheiros, daquele sítio de arrojada e urbana vivência. Tinha fome. Foram a um restaurante ainda aberto, um daqueles diners que normalmente tresandam a cozinhado foleiro, e ele pediu dois hambúrgueres com batatas fritas. No seu estômago, o vinho caro recebia com prazer e contradição aquela fast-food sebácea e mundanamente saborosa.

3. Os Tempos de Fome


A fome. Grande miséria esmagadora dos fracos, servil companheira dos desafortunados, tu, fome, tu manifestas-te sob variadas formas. O inferno dos comuns esfaimados não será para mim, porventura nunca nesta vida. Mas a fome mora comigo. Bem no fundo do meu corpo. As asas que a um momento ou outro, se tivermos sorte, recebemos devem ser doseadas correctamente ou começamos a temer a continuação da fome. É um sentimento terrível, que deixa espalhada uma miríade de espelhos intactos mas baços. E isto não quer dizer que necessariamente tenhamos ou devamos saciar totalmente essa míngua. Mas ter demasiada voracidade de viver pode consumir a própria vida. A autofagia de ser e estar no mundo, esse tão dual maquinismo, concomitantemente amigo e adversário. Essa miséria do eterno consumo. A fome.
Ricardo X. Fonseca, O rei sem trono.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

instinto básico

"(...) compreendi finalmente que a ausência, a solidão e o esquecimento eram coisas terríveis, tão terríveis como uma mutilação ou a morte de um filho, tão terríveis como um velho amigo ao qual nunca mais ouviremos a voz nem conheceremos o cheiro nem saberemos a cor dos olhos, tão terríveis que, mesmo nos livros, até nos romances mais pessimistas, não devemos chamar por elas, não devemos enaltecê-las ou tentar transformá-las em beleza."

João Tordo, O BOM INVERNO

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

a liberdade

Of course, a cultural identity of this type [transculturality] is not to be equated with national identity. The distinction between cultural and national identity is of elementary importance. It belongs to the mustiest assumptions that an individual's cultural formation must be determined by his nationality or national status. The insinuation that someone who possesses an Indian or a German passport must also culturally unequivocally be an Indian or a German and that, if this isn't the case, he's some guy without a fatherland, or a traitor to his fatherland, is as foolish as it is dangerous. The detachment of civic from personal or cultural identity is to be insisted upon - all the more so in states, such as ours, in which freedom in cultural formation belongs among one's basic rights.

Wolfgang Welsch, "Transculturality - the Puzzling Form of Cultures Today"

terça-feira, 24 de agosto de 2010

terça-feira, 10 de agosto de 2010

da felicidade

A felicidade não existe como objectivo. É sempre um resultado.

tonight

America bled to death
Electric & pregnant
Brilliant sluts & fire worship
Devouring the righteous
We were just monkeys braiding thread
We were golden needles
Diamonds and pollen
And Coma White
A manniqueen of depression
The face of a Dead Star
Fagged out for the corner
She was so soft in the bed
And the pomegranet earth spins into oblivion
The one that trembles
The one that fears
The one that suffers
The one that vomits
The one that needs
The one that trembles
The one that fears
The one that suffers
The one that vomits
The one that needs
A million scars, a million promises

And all your sad endings are planting in their gardens
And they're waiting to grow & to die like flowers do

Marilyn Manson, "Diamonds and Pollen"

sábado, 7 de agosto de 2010

diálogos

"They think they're the shit. Well, not all of them. But a lot of them do!"
"Really? That's lame. It's one of those wanna-be-urban cases, right?"
"Exactly. They're nothing more than peasants."

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

P.

O barco não irá ao fundo. Sei-o porque é o mais forte. Mais não digo.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Estou farto.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A morte sem intermitências

A carta que escrevi e nunca cheguei a enviar a José Saramago infelizmente nunca será entegue. Ficará na minha gaveta, junto do carinho e sobretudo da admiração que lhe tinha. Obrigado por ter sido uma inspiração; obrigado por me ter feito gostar de literatura. Obrigado.

domingo, 6 de junho de 2010

here's hoping

Stirb nicht vor mir

domingo, 30 de maio de 2010

"it may not always be so"

It may not always be so; and I say
that if your lips, which I have loved, should touch
another's, and your dear strong fingers clutch
his heart, as mine in time not far away;
if on another's face your sweet hair lay
in such a silence as I know, or such
great writhing words as uttering overmuch,
stand helplessly before the spirit at bay;

if this should be, I say if this should be-
you of my heart, send me a little word;
that I may go unto him, and take his hands,
saying, Accept all happiness from me.
Then shall I turn my face, and hear one bird
sing terribly afar in the lost lands.

E. E. Cummings

terça-feira, 25 de maio de 2010

terça-feira, 18 de maio de 2010

o cavaquinho, o chicote e o escuro

Há coisas que eu odeio neste mundo, não querendo sequer falar no discurso do Cavaco sobre o casamento gay, e são nomeadamente e entre outras: a culpa e os medos irracionais.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

lost

What am I suppose to say?

sábado, 15 de maio de 2010

Ευχαριστώ, Δανάη!


The Forgotten Guard, 1947
Oil on canvas. Private Collection

quarta-feira, 12 de maio de 2010

est

Esses momentos de alta revelação, de claras vidências e luzes maiores que o mundo, esses momentos são sempre puxados à terra pela simples crença na minha própria simplicidade. Não há nada, repito, nada de especial em relação a mim. Nem em relação a ninguém. O truque é reconhecer a epifania e distorcê-la ao ponto de criar algo cicatrizado e novo.

terça-feira, 4 de maio de 2010

confronto de titãs trogloditas

Apesar de este senhor ser um dos maiores trogloditas que jamais caminhou neste planeta, não posso deixar de concordar com algumas das suas ideias contra os EUA. E até é uma lufada de ar fresco que alguém faça frente ao monstro capitalista e imperialista em que este país se tornou. A ler aqui:
http://www.publico.pt/Mundo/presidente-do-irao-pede-expulsao-dos-eua-da-aiea_1435262


sábado, 24 de abril de 2010

pessimista

A Revolução Francesa espetou uma faca nas suas próprias costas. A Revolução dos Cravos prometeu aquilo que nunca providenciou. Parece que não há como contrariar a eterna contradição humana.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

o tornado








Engraçado…Estava em Lisboa quando isto aconteceu e nem me apercebi – ao que parece o tecto do Coliseu dos Recreios ficou danificado. E os discursos do edifício ao lado mal aguentavam o barulho da reconstrução.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

da escrita à escrita

Por vezes penso que a crítica e teoria literárias se esquecem que os escritores são acima de tudo e fundamentalmente seres interessados em contar histórias ou escrever poemas - e tentar escavar sentido mais arrojado do que o desejável é um pouco ridículo.

quarta-feira, 31 de março de 2010

uma auto-estrada perdida



Without you everything falls apart. Without you it's not as much fun to pick up the pieces."

quarta-feira, 24 de março de 2010

Ódio à saída de um bar

Nunca pensei que o ódio humano pudesse ser tão rápido, inesperado e irracional (e cobarde). Pergunto: será que as pessoas precisam de afirmar as suas margens através das margens daqueles que não são o centro?

domingo, 21 de março de 2010

antecipando coisas

Wine on the beach and oil under the feet - that is what I call pre-game.

terça-feira, 2 de março de 2010

mania de matarem as diferenças

Aqui está a petição contra o acordo ortográfico da língua portuguesa. Não é coerente nem sensato. E é injusto.

segunda-feira, 1 de março de 2010

confirmação na arte

"... que fazer? temos sexo, usemo-lo; temos mãos, trabalhemos; que a nossa lamentação ao menos seja um canto verdadeiro; tenho asco e tristeza quando o penso, mas se não pensasse isto tê-los-ia na mesma; pois pensemos; a salvação não está senão em mim, no meu sexo, no meu prazer, ou num filho talvez; se fui talhado para pertencer ao medo, se um pânico me come e me alimenta, seja enfim eu mesmo, e não sem desespero; seja eu para mim um homem, e um deus que se ergue do seu leito nas trevas; são horas de levantar-me, horas de tentar ser; ser, sendo."
Almeida Faria, A paixão

abrupto

Cada vez mais me parece que o capítulo final (ou, pelo menos, os últimos dois capítulos) do Memorial do convento podia muito bem ser um conto, pelas características que apresenta. Bastava um pouco mais de caracterização das personagens e teríamos aí uma bela forma breve. O que não tira de todo a genialidade ao romance.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

as ondas que sempre voltam

FRESTA

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

Fernando Pessoa

o olhar de uma criança

“Estilhaço”

O olhar de uma criança
Fitando um copo rachado
Água a escapar pela fenda
O olhar de uma criança
Descendo a ameaça de
Um alvo desenhado no seu rosto
Vê a serpente mordendo o vidro
O indicador de uma pálida mão incógnita
Abrindo-lhe os queixos avermelhados
O olhar de uma criança
Sabendo que terá de beber o veneno
Abre a boca com receio de um tiro
O corpo do réptil abraçando-lhe o pescoço
O olhar de uma criança
Sob o descolar de um avião
Ou apenas a sua passagem bombástica
O sobrolho franzido e resignado
Aceitando a cor do seu sangue
A mesma cor do veneno da guerra

in Frederico Rodrigues, Guerra

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

a ubiquidade da memória

"... puxa com as mãos o cobertor para o peito, para as barbas e o pescoço engelhado; sem ser capaz de dormir, olha a noite lá fora e a luz pela janela; olha tranquilo o sono e a vigília; sem pressa, sem nenhuma pressa; também não sonha; diz que não está já em idade de sonhar; não se lastima nunca do tempo que passou mas do que passa; vê os poentes e os círculos da tarde, enche o coração de uma alegria calma; dá ao silêncio o seu valor e não busca nos homens senão o que não sabem; ouve o vento distante e não se move; ao canto da açoteia sobre o tecto em que dorme, o vento faz de quando em vez girar num remoinho rápido uma porção de pó e de cotão com pétalas de malva e de roseira brava, restos de linhas com pedaços de pano e papel de jornal, a casca duma barata meio encarniçada no ventre e na base das patas como pentes, os anéis a dessoldar-se e a cabeça larga chata; o bom Moisés, de boca pregueada, nariz curvo de velho, molhado, rugas fundas por toda a face, dorme vestido, de ceroulas, camisa xadrez, meias sujas suadas, e recorda, desperto, sem querer: o silêncio da noite agora é grande, como quando ela morreu; a noite é morte, é a raposa velha; morreu um ano, nem sequer um ano, depois de nos juntarmos; os nove meses, foi aquela conta; albumina, disse o douor, o raio que o parta; o crianço veio morto, vil e cizento, de pescoço torcido; mas não interessava isso, desde que ela vivesse; eu sabia; tinha dez possibilidades de escapar, contra noventa; foi-se; pronto, não sofre, que havemos de fazer? uma noite como esta, deserta e aluada; quando ela morreu estávamos sós os dois, sós como quando amámos; ela deu um grito e em seguida um ai, contente, levezinho, resignado, quando rompi aquilo, nessa noite; não na outra; suava, tinha a cara alagada, cheia de febre, dores, se calhar pena de morrer; fiquei de todo abandonado; andei sem eira nem telha, como um bicho, não voltei a conhecer mulher, foi o diabo; então cá o morgado arranjou-me trabalho; cuidava dos cavalos e vivia-se; mas os cavalos rancolhos tiveram de ser vendidos, e o breque também; a cocheira ficou vazia, eu a dormir nela, verão e inverno, sem ninguém, sentindo a falta da mulher, de um corpo ao menos que nos meus achaques me valesse; hei-de morrer aqui em uma noite destas e só se lembram de mim ao fim do outro dia, ao darem pela minha falta à hora de jantar, quando eu estiver feito um carapau, lívido inteiriçado; na noite em que fugimos fomos para Vila Nova de Milfontes, aí trabalhei de marítimo durante todo o verão; foi um imenso verão; ela não tinha visto o mar, fechada na charneca entre azinheiras, disse que não sabia de o mar ser assim tanta água em moitão, e quando tivemos que atravessar a serra ela perguntou por que é que tinham feito uns cabeços tamanhos, que calhando estavam ali desde que mundo é mundo, desde que Deus Nóssenhor lhes deu amanho; calhando, pois, retorqui-lhe eu; o mar era qual se, à superfície, tivesse posta uma colcha de gaze, uma rede de pesca, em cujas malhas as ondas se afilassem; não me esqueço do mar; é como um espelho ou a eternidade; brilha, reflecte, fere e encandeia; a terra castanha e seca, casas, cercadas de planície; aí é que se sabe a soidade da sede ( e o homem da terra responeu e disse: semeio sempre até que o sono chegue mas a mulher anda de pingadêra e a ceia é velha, como a sede), Moisés sonhou ou passou-lhe aquela nuvem pela vista, deu-lhe uma tonteira e os sentidos a modos que lhe saíram da cabeça; as sobrancelhas pesam, grossas, sobre os olhos abertos; há uma vontade, nele, de regressos; na sombra da cocheira, com freios e estribos e selas de arção, a sua cara de malares e queixos salientes parece rir ou sorrir, mas recorda: devagar fomos para o cemitério; passámos pelos jazigos dos ricos, enfeitados, portas e janelas gradeadas, lamparinas, flores, seguimos para o alto, a parte pobre, onde o vento vinha pelo meio das ervas e desmoronava os torrões das covas rasas; aí, como eu um dia, aí foi que ela adormeceu para sempre."

Almeida Faria, A paixão.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Irritado de novo

A dificuldade em respirar irrita-me. Tal como me irrita a ansiedade social. E a aridez de Isla Vista. E eu mesmo.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

previsão de um certo modernismo

"E na sua face enrugada, através deste berro, lampejava sempre tanta indignação, que eu curvava os ombros, humilde, no arrependimento de ter afrontosamente ultrajado o Príncipe que tanto amava. Desventurado Príncipe! Com o seu dourado cigarro de Yaka a fumegar, errava então pelas salas, lenta e murchamente, como quem vaga em terra alheia sem afeicões e sem ocupações. Esses desafeiçoados e desocupados passos monótonos o traziam ao seu centro, ao gabinete verde, à Biblioteca de ébano, onde acumulara Civilização nas máximas proporções, para gozar nas máximas proporções a delícia de viver. Espalhava em torno um olhar farto. Nenhuma curiosidade ou interesse lhe solicitavam as mãos, enterradas nas algibeiras das pantalonas de seda, numa inércia de derrota. Anulado, bocejava com descoroçoada moleza. E nada mais instrutivo e doloroso do que este supremo homem do século XIX, no meio de todos os aparelhos reforçadores dos seus órgãos, e de todos os fios que disciplinavam ao seu serviço as Forças Universais, e dos seus trinta mil volumes repletos do saber dos séculos - estacando, com as mãos derrotadas no fundo das algibeiras, e exprimindo, na face e na indecisão mole de um bocejo, o embaraço de viver!"

Eça de Queirós, A cidade e as serras.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

bang bang!

Sentindo-me culpado pela notória falta de sentido de moda desta senhora, gosto, no entanto, e bastante, desta canção. Ouço-a no autocarro que leva os alunos graduados e não só (eu incluído na secção pós-graduada) à cidade de Santa Barbara, desde quarta-feira até sábado. O autocarro é uma porcaria. A música boa. E ao que parece a M.I.A está a trabalhar com os Buraka. A cantora da banda portuguesa também não preza pelo modo de se vestir - mas a música não padece por isso. Faça-se, então, mais música boa e a moda que espere um pouco! ;)
M.I.A - "Paper Planes"

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

conhecer

"Por que não tentas ajudar-te?
Eu não quero ajudar-me.
Porquê?
Um dia talvez te diga.
A conversa seguia como se segue por um desvio, afastando-se do objectivo principal, tal como acontece, de resto, na maior parte das conversas. Ele sabia que extrair informação dela seria difícil, senão até impossível. Ela era quase imperscrutável, um porta fechada a sete e mais chaves, e ele só conseguia ver pelo buraco da fechadura, apenas podia observá-la através daquela pequena janela para o interior. Mas ele queria a todo o custo sabê-la, descobri-la, inteirar-se do que lhe ia na alma. Não lhe oferecia ajuda alguma, oferecia somente sugestões. Se ela se ajudasse a ela própria ou procurasse ajuda profissional ele iria finalmente conhecê-la, porque só se conhece a personalidade dos aflitos quando eles fazem por matar os insectos que lhes comem o sorriso.
Diz-me, já pensaste em psiquiatras, psicólogos, talvez?
Eu não preciso nem de uns nem de outros. Não.
Mas talvez eles te pudessem
Não podem nada. Por favor, não insistas.
Mas qual seria o mal?
Esse é o problema, não me faria mal nenhum.
Não sei se percebo o que dizes.
O mal que tenho é meu. O vazio que tenho dentro de mim é só meu. São as únicas coisas minhas, só minhas e de mais ninguém. Quero preservá-las acima de tudo.
Mas e se
São minhas. Afasta-te.
Ele levantou-se e ela saiu rapidamente. Ainda lhe sentiu o perfume doce e afiado como uma lâmina. Nunca iria conhecer aquela mulher. Só lhe sabia o mal e ela nunca o partilharia com ninguém."
Frederico Rodrigues, Quero-te na calada da
noite

domingo, 7 de fevereiro de 2010

a noite em Paris

leituras escritas

"Os moribundos corriam e bebiam água, descobrindo uma nova forma de vida - eu sabia que o ataque estava para breve. Aquela casa de deboche seria o primeiro alvo e eu não tinha maneira de avisar quem lá morava. (...) Levaram-no enquanto dormíamos. Aqueles sanguinários acéfalos tinham-no levado. E era hora de eu voltar a casa."
Frederico Rodrigues, Quero-te na calada da
noite
.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Odete

Ainda estou para saber por que razão a maior parte dos realizadores portugueses não entende a diferença entre o cinema e a literatura.

a receita do oblívio

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

to a goddess unkown

"She used to be so beautiful.
She's still beautiful.
She's too sad to be beautiful. No one that sad can still be beautiful.
(...)
I've wanted to call the house and tell her that everything is okay, that she can stop hating herself now, that she's punished herself long enough."
Paul Auster, Invisible

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

recentes aquisições, recentes desastres

Acontece quando um ovo cai acidentalmente DENTRO da boca do fogão e não no tacho.








Postal feito a partir de um quadro demasiado caro de Jenny Markowitz. Chama-se War. Paguei cinco dólares pelo postalinho. Perguntaram-me se era para oferecer. Disse peremptoriamente que era para mim.


segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

kinda funny, kinda sad

Há anos que não vejo este filme. Há anos que ando para o rever. Frase simples e de certa forma foleira que me lembro: 'What does that mean know me, know me, nobody ever knows anybody else, ever! You will never know me."

domingo, 24 de janeiro de 2010

IRRITADO

Há muitas coisas que me irritam. Uma delas é que assumam e presumam coisas a meu respeito sem me conhecerem. Do alto do seu trono de normalidade ou falsa razão, há gentinha que se acha no direito de resumir pessoas que mal conhecem a categorias completamente idiotas. Gente sem sensibilidade alguma, gente que não reconhece em si os defeitos que critica nos outros. Essa gentalha é-me desprezível, quase. E eu sou uma pessoa paciente. O reconhecimento de uma certa imaturidade mostra, de facto, maturidade. Deixa de te queixar, dizem. Para o caralho! É tudo um esvoaçar de passarada, de gente disfarçada de pombas mas que não passam de cucos.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

siste viator

"À Fragilidade da vida humana"

Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.

Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse estio em vesúvios encendido
Foi zéfiro suave em doce agrado.

Se a nau, o sol, a rosa, a primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,

Olha, cego mortal, e considera
Que és rosa, primavera, sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.

Francisco de Vasconcelos, (Fénix, III: 246)

asas para voar, asas para cair

Já lá vão alguns anos depois do filme Brokeback Mountain ter saído. Ainda hoje não sei explicar as lágrimas que jorraram dos meus olhos antes, durante e depois de ter ido ao cinema. A partir desse momento nunca mais fui o mesmo, para o bem e para o mal. Esta canção em particular, The Wings, composta por Gustavo Santaolalla, sem palavras disse-me um caminho que segui posteriormente, que me trouxe até onde estou e sou agora. Muitos outros elementos participaram desse processo, mas o ponto de partida ou de ruptura foi este filme. E até hoje sempre que o revejo choro como se fosse a primeira vez. A memória é uma coisa que persiste em não esquecer que as dores que outrora sentimos são passíveis de serem sentidas a qualquer momento das nossas vidas. E também as alegrias, suponho. Aqui ficam as asas que me permitiram voar, cair, voar, cair, voar, cair, voar e cair. E levantar-me nos pés. Em homenagem a uma história brilhante e a um actor fantástico, que morreu sem ser o que poderia maximamente ser. R.I.P Heath Ledger. R.I.P Jack Twist. R.I.P tudo o que poderia ter sido e não foi.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

o som do piano

O quanto gostava eu que as minhas palavras dissessem o som de um piano. Que cada letra fosse uma nota, cada frase um acorde, cada língua uma música. E assim todos falaríamos o som de um piano. E nunca morreríamos. Mas pode-se só duas mãos, apenas se consegue atingir o quanto a técnica nos dita, somente podemos falar o som de um piano quando sabemos o que é a comunicação e os dedos nos ajudam a executá-la. Agora sei que devia ter aprendido mais inteiramente a linguagem da música. Porque, por vezes, não sei falar as línguas que me ensinaram - não são suficientes. E o som abafado de um piano que quer ressoar no infinito levanta-se dentro de mim, mas fica preso na minha garganta - condenado ao silêncio de uma voz que em muitas ocasiões não consegue expressar coisa alguma.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

antecipando o crepúsculo





NIN - "In this Twilight" (live)
O concerto está disponível no youtube.

devolvam-me o trono

Bat For Lashes, "Trophy"

the things you can't control

"...odds don't count when it comes to actual events, and just because a thing is unlikely to happen, that doesn't mean it won't."
Paul Auster, Invisible

domingo, 10 de janeiro de 2010

sábado, 9 de janeiro de 2010

tits

Parece que o presente número 1 que os pais americanos oferecem às filhas que se licenciam (ou acabam o liceu) é um implante mamário. Ainda estou para saber o que isso diz da cultura americana....

o limar do sexo dos anjos

"Harper Pitt: Oh well don't apologize, I can't expect someone who's really sick to entertain me.
Prior: How on earth did you know?
Harper Pitt: Oh that happens. This is the very threshold of revelation. Sometimes you can see things like how sick you are. Do you see anything about me?
Prior: Yes, you are amazingly unhappy
Harper Pitt: Big deal, you meet a valium addict, you figure out she's unhappy - that doesn't count. Of course I - something else? something suprising?
Prior: Something suprising?
Prior: Your husband's a homo.

Harper Pitt: Well this is the most depressing hallucination I ever had. "
Tony Kushner, Angels in America

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

sorrisos

Às vezes odeio pessoas felizes.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

reiniciar

Aqui, onde o calor aquece as paredes das varandas mais altas e os cigarros se sucedem uns aos outros, aqui, onde a fome cessou e o café é de papel, aqui chove nos meus pés e o céu, limpo, tenta secá-los. Começa-se com uma queda da qual nos levantamos, sempre nos levantamos, de uma forma ou de outra nos levantamos. Até os nossos pés aguentarem mais do que uma simples caminhada curta.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

sábado, 2 de janeiro de 2010

Novo Ano, Velhos Novos Desejos

Começo o ano novo com a impressão de que a noite passada não aconteceu. Está tudo em branco, ausência que espero poder preencher com o que achar melhor para mim. E às vezes o que apetece mesmo dizer é o cliché: que haja paz e felicidade no mundo. E então que haja paz e felicidade no mundo.