sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

a ubiquidade da memória

"... puxa com as mãos o cobertor para o peito, para as barbas e o pescoço engelhado; sem ser capaz de dormir, olha a noite lá fora e a luz pela janela; olha tranquilo o sono e a vigília; sem pressa, sem nenhuma pressa; também não sonha; diz que não está já em idade de sonhar; não se lastima nunca do tempo que passou mas do que passa; vê os poentes e os círculos da tarde, enche o coração de uma alegria calma; dá ao silêncio o seu valor e não busca nos homens senão o que não sabem; ouve o vento distante e não se move; ao canto da açoteia sobre o tecto em que dorme, o vento faz de quando em vez girar num remoinho rápido uma porção de pó e de cotão com pétalas de malva e de roseira brava, restos de linhas com pedaços de pano e papel de jornal, a casca duma barata meio encarniçada no ventre e na base das patas como pentes, os anéis a dessoldar-se e a cabeça larga chata; o bom Moisés, de boca pregueada, nariz curvo de velho, molhado, rugas fundas por toda a face, dorme vestido, de ceroulas, camisa xadrez, meias sujas suadas, e recorda, desperto, sem querer: o silêncio da noite agora é grande, como quando ela morreu; a noite é morte, é a raposa velha; morreu um ano, nem sequer um ano, depois de nos juntarmos; os nove meses, foi aquela conta; albumina, disse o douor, o raio que o parta; o crianço veio morto, vil e cizento, de pescoço torcido; mas não interessava isso, desde que ela vivesse; eu sabia; tinha dez possibilidades de escapar, contra noventa; foi-se; pronto, não sofre, que havemos de fazer? uma noite como esta, deserta e aluada; quando ela morreu estávamos sós os dois, sós como quando amámos; ela deu um grito e em seguida um ai, contente, levezinho, resignado, quando rompi aquilo, nessa noite; não na outra; suava, tinha a cara alagada, cheia de febre, dores, se calhar pena de morrer; fiquei de todo abandonado; andei sem eira nem telha, como um bicho, não voltei a conhecer mulher, foi o diabo; então cá o morgado arranjou-me trabalho; cuidava dos cavalos e vivia-se; mas os cavalos rancolhos tiveram de ser vendidos, e o breque também; a cocheira ficou vazia, eu a dormir nela, verão e inverno, sem ninguém, sentindo a falta da mulher, de um corpo ao menos que nos meus achaques me valesse; hei-de morrer aqui em uma noite destas e só se lembram de mim ao fim do outro dia, ao darem pela minha falta à hora de jantar, quando eu estiver feito um carapau, lívido inteiriçado; na noite em que fugimos fomos para Vila Nova de Milfontes, aí trabalhei de marítimo durante todo o verão; foi um imenso verão; ela não tinha visto o mar, fechada na charneca entre azinheiras, disse que não sabia de o mar ser assim tanta água em moitão, e quando tivemos que atravessar a serra ela perguntou por que é que tinham feito uns cabeços tamanhos, que calhando estavam ali desde que mundo é mundo, desde que Deus Nóssenhor lhes deu amanho; calhando, pois, retorqui-lhe eu; o mar era qual se, à superfície, tivesse posta uma colcha de gaze, uma rede de pesca, em cujas malhas as ondas se afilassem; não me esqueço do mar; é como um espelho ou a eternidade; brilha, reflecte, fere e encandeia; a terra castanha e seca, casas, cercadas de planície; aí é que se sabe a soidade da sede ( e o homem da terra responeu e disse: semeio sempre até que o sono chegue mas a mulher anda de pingadêra e a ceia é velha, como a sede), Moisés sonhou ou passou-lhe aquela nuvem pela vista, deu-lhe uma tonteira e os sentidos a modos que lhe saíram da cabeça; as sobrancelhas pesam, grossas, sobre os olhos abertos; há uma vontade, nele, de regressos; na sombra da cocheira, com freios e estribos e selas de arção, a sua cara de malares e queixos salientes parece rir ou sorrir, mas recorda: devagar fomos para o cemitério; passámos pelos jazigos dos ricos, enfeitados, portas e janelas gradeadas, lamparinas, flores, seguimos para o alto, a parte pobre, onde o vento vinha pelo meio das ervas e desmoronava os torrões das covas rasas; aí, como eu um dia, aí foi que ela adormeceu para sempre."

Almeida Faria, A paixão.