sábado, 4 de dezembro de 2010

1200


Pedia copo de vinho atrás de copo de vinho, um qualquer vinho caro. Sentado no sofá, fumava cigarros insistentemente, olhando as pessoas, sorrindo na escuridão daquele bar, sozinho, abandonado a si mesmo por seu próprio arbítrio. Sabia-lhe bem estar numa cidade desconhecida a gastar dinheiro que talvez não devesse gastar. Os seus amigos tinham saído para ver outros rostos, mas ele permanecera naquele sofá, esperando que as pessoas importantes iniciassem uma conversa que fosse. Sempre que lhe pediam para se sentarem ao lado de alguém no mesmo sofá ele acenava que sim e sentava-se mais para a direita ou mais para a esquerda. Estava no coração dos ricos daquela cidade, ele, tão deslocado e desamparado, sorria por encontrar conforto num estilo de vida que um dia queria que fosse o seu. Ao fim de uma hora alguém lhe perguntou o nome e o que fazia. Mentiu. Disse que se chamava qualquer coisa que não constava no seu passaporte e que era escritor. Que tinha publicado em revistas académicas e que estava a acabar um romance. Tinha de ser assim. Era uma cidade de actores e tudo era representação. Apetecia-lhe entrar no jogo. Ser quem era ali não teria relevância alguma. E o que procurava era relevância, encontrar pessoas dedicadas à fama e ao dinheiro. Queria ser um dandy. Nunca soube o que o sujeito que lhe perguntou o nome fazia, mas não parecia importante. Depois houve uma loura que o interpelou. Sentou-se a seu lado no sofá, as velas acesas e as pessoas que fumavam pareciam já não interessar, sentou-se e iniciou uma conversa. Era uma aspirante a jornalista. Estudava numa universidade privada naquela cidade. Tinha nascido no meio do estilo de vida rock. Ele não sabia exactamente o que ela queria dizer, mas exclamou que sim com falsa surpresa, que a admirava, que esperava que ela tivesse sucesso. Entretanto, o vinho continuava a vir e os cigarros eram fumados esfomeadamente. A rapariga desinteressou-se, pensou ele quando ela pediu licença para ir falar com um amigo.
Começou a observar minuciosamente as diversas raparigas e mulheres que fumavam cavaqueiramente, e também os rapazes e homens que, de pé, as acompanhavam. A sua mente fugia-lhe para um lugar que recentemente o havia invadido. Esse lugar era a hipótese de sexo com uma fêmea. Nunca o tinha feito, por falta de interesse físico e receio de não estar à altura das exigências. Pensou no seu pénis. Com uma determinada quantidade de álcool ingerida acreditava que poderia ter relações com quase tudo o que se mexesse. Gostava de pensar em si mesmo como uma pessoa extremamente sexual, e muitas vezes enrolava-se aos beijos e toques com raparigas desconhecidas. Acontecia quase exclusivamente em festas onde já ébrio se excitava com o leque de opções ao seu dispor. Era, diziam-lhe e ele próprio pensava assim, bastante atraente para ambos os sexos, e gostava de jogar com o seu sex-appeal. De facto, o flirt era a sua principal qualidade e mais desenvolvida capacidade, e era com rapidez, naturalidade e exotismo que exercia esse seu lado. Desenvolto que se considerava, o suficiente para não se achar tímido, era um jogador como tantos outros. Não porque fosse um sujeito cruel em querer excitar os outros e depois despedir-se sem mais um passo na direcção da consumação carnal ou algo que indicasse o convite para um encontro. Não, não era essa a razão. A verdade era que se alimentava um pouco da atracção que os outros sentiam por ele, mas isso apenas significava que ele procedia a uma autofagia que, não sendo destrutiva, era pelo menos desgastante e quiçá perigosa. Na maior parte das vezes sentia nojo e repulsa perante a perspectiva de um romance, de uma relação amorosa. Encontrava mais conforto nos braços de gente estranha por umas horas do que na possibilidade de amar e ser amado, de receber e retribuir gestos de cumplicidade todos os dias e sempre com a mesma pessoa. Por outro lado, muitas vezes sentia necessidade disso mesmo, de estabilidade, de uma ponte que estabelecesse um balanço correcto na sua vida gasta em horas tardias, sofredora em muitos dias. Mas ele considerava-se imaturo por demasiado, obcecado por natureza, egoísta no silêncio da desilusão de umas simples reticências numa mensagem. Não, não era amor que procurava naquele espaço e naquela cidade. Era o flirt, era o misturar-se com gente do meio que ansiava atingir, aquele meio onde o dinheiro abundava, as janelas dos carros eram escuras, e a cultura pop era ditada. Queria, assim, ser um ditador. De massas e de modas, de estilos e de sons, de filosofia e do espectáculo, do exibicionismo e do anonimato dos altos muros e dos óculos de sol. Sonhava sorrindo, sentado num dos sofás daquele bar, esperando que alguma das suas estrelas favoritas aparecesse e a oportunidade se desse para a conversa, a troca de impressões, a participação, nem que fosse momentânea, numa qualquer gravação ou ensaio.
Os copos de vinho e os cigarros sucediam-se uns atrás dos outros, e ele falava com as mais diversas pessoas que não conhecia, dizendo-se sempre escritor. Uma rapariga loura pediu-lhe um cigarro e quando ele lhe mostrou a marca que fumava, estrangeira para a jovem mulher, desconhecida para a sua nacionalidade, os olhos claros da figura esguia e certamente endinheirada propunham-lhe receio. Não sei se consigo fumar isto, se for muito forte, só costumo fumar quando bebo e nunca muito, ainda vou desmaiar. Se desmaiares eu seguro-te, respondeu-lhe ele, sem hesitação. O flirt, mais uma vez. Disseram-lhe que ela estaria possivelmente a fazer-se ao piso, expressão tão vulgar quanto as imagens que lhe passavam pela cabeça. Mas durante o resto da noite a mesma rapariga loura não enviou mais algum sinal que fosse, e ele desinteressou-se. Depois, conheceu um estilista australiano, alto, moreno, sotaque irresistível, blazer e calças impecavelmente combinados, estilista australiano que queria ir a Lisboa e que ficou com o seu número e e-mail. Contrariamente ao que esperava daquele sujeito, ele não jogava na sua equipa e não parecia muito empenhado em acompanhar e ouvir a conversa que ele, o rapaz perdido doze e cem vezes, tentava manter. Consequentemente, no anonimato da sua própria presença começou a sentir um desconforto inesperado, uma paulatina epifania que relegava a sua t-shirt original e cabelo e nacionalidade diferentes para um plano onde nunca seriam novidade nem motivo de curiosidade extremas. Viu-se uma vez mais sem alguém a conversar consigo. Continuava sorrindo, agora um pouco estupidamente, e, já bebido, seguia olhando em volta, perscrutando a sala com o olhar turvo.
Pouco tempo após essa repentina e repetida solidão voltavam os seus amigos. Não era ainda hora de ser um dos beautiful ones. Pagou a sua conta, tinha gasto mais do que devia sem no entanto se arrepender, e saíram, ele e os seus companheiros, daquele sítio de arrojada e urbana vivência. Tinha fome. Foram a um restaurante ainda aberto, um daqueles diners que normalmente tresandam a cozinhado foleiro, e ele pediu dois hambúrgueres com batatas fritas. No seu estômago, o vinho caro recebia com prazer e contradição aquela fast-food sebácea e mundanamente saborosa.

3. Os Tempos de Fome


A fome. Grande miséria esmagadora dos fracos, servil companheira dos desafortunados, tu, fome, tu manifestas-te sob variadas formas. O inferno dos comuns esfaimados não será para mim, porventura nunca nesta vida. Mas a fome mora comigo. Bem no fundo do meu corpo. As asas que a um momento ou outro, se tivermos sorte, recebemos devem ser doseadas correctamente ou começamos a temer a continuação da fome. É um sentimento terrível, que deixa espalhada uma miríade de espelhos intactos mas baços. E isto não quer dizer que necessariamente tenhamos ou devamos saciar totalmente essa míngua. Mas ter demasiada voracidade de viver pode consumir a própria vida. A autofagia de ser e estar no mundo, esse tão dual maquinismo, concomitantemente amigo e adversário. Essa miséria do eterno consumo. A fome.
Ricardo X. Fonseca, O rei sem trono.