terça-feira, 29 de setembro de 2009

Marilyn Manson - "Man That You Fear" (live 1997)

O piano fala pelo resto da música. A performance marca todas as palavras cantadas e confere-lhes maior significação e alcance. E aposto que Beckett (como me foi sugerido por alguém) poderia ter inventado uma personagem que pelo menos se assemelhasse à pose assumida pelo Manson nesta interpretação.

domingo, 27 de setembro de 2009

Uma Oração

Creio nos anjos
que andam pelo mundo
Creio na deusa
com olhos de diamante
Creio em amores lunares
com piano ao fundo,
Creio nas lendas,
nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho
que falta mais fecundo
De harmonizar
as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno
num segundo,
Creio num céu futuro
que houve dantes,

Creio nos deuses
de um astral mais puro,
Na flor humilde
que se encosta no muro
Creio na carne
que enfeitiça o além

Creio no incrível,
nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo
pelas rosas,
Creio que o amor tem asas
de ouro. Amén

Natália Correia, "Creio"

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

"God's Aways on Business"

"I don't think God knows who we are. I think He would like us, if He knew us, but I don't think He knows about us.

But He made us, Miss. No?

He did. But He made the tails of peacocks too. That must have been harder.

Oh, but, Miss, we sing and talk. Peacocks do not.

We need to. Peacocks don't. What else do we have?

Thoughts. Hands to make things.

All well and good. But that's our business. Not God's. He's doing something else in the world. We are not on His mind.

What is He doing then, if not watching over us?

Lord knows."

in Toni Morrison, A Mercy

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Arquitectando Esqueletos

O tubarão deu à costa morto, pescado acidentalmente ou apagado por causas naturais, não me recordo. Estava doente, enfermo numa cama de hotel, com o cérebro queimado de febre e a cara destruída pela temperatura do corpo.

aos confrontos
crispados de rebentamentos

em mim

férias mais cedo, de volver ao país porque havia assuntos prementes a resolver. E eu pensava
Metemo-nos à pressa num táxi em direcção ao aeroporto. As pessoas acharam que tínhamos prioridade
e a vida, que estavam
eram arrasadas por vergastadas. Eu era jesus desnudo, com os braços livres para me tocar.
de culpa. E no funeral eu só soube rir-me em casa. Não vi onde ias, para onde foste, não te vi a ser devorado pela terra. Mas ouvi os gritos de todos, ouvi-os ao masturbar-me depois
e que uma das tuas irmãs reprovou. Éramos nós desorientados na tua ausência.

pretas, dizia a minha mãe. E aí eu soube que estavas morto. No fundo de mim, eu soube que me morreras. O teu tio Tónio morreu. O meu tio Tónio morreu. Chorei.
nunca o teres feito. A tua face sisuda ao ver-nos, sabendo nós que não permitirias que as lágrimas
e tal foram um crescendo. O fim de tarde lento, de calor, o meu gato desnorteado, ao chegarmos
um dos teus sobrinhos e chorei. A minha camisola preta de mangas compridas que
sofria. Não porque o meu sofrimento não fosse verdadeiro, mas porque queria que percebessem
A morte tocou-nos no calor, dilacerados por um sol que nunca mais nos aqueceu. Dizia-se, já não há alegria.
Eu que sempre evitava visitar esse espaço. Era um novo ciclo de paixões que me aconteciam
o tumulto da incerteza e o início da imbecilidade da inveja dos outros corpos
se começava a delir na minha memória. E disse a minha mãe, que, a jeito de me
racionalidade.

coisas e uma profunda amargura ao prever o sofrimento das fotografias progressivamente
mais baças.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Efeito Borboleta

Não sabia que o filme Tropa de Elite era para chorar. Mas chorei. No conforto burguês da minha cama e do meu portáltil chorei. Por cada morte indiferente. Por cada realidade dura nos morros. E senti-me um idiota hipócrita. Porque sou mais um puto burguês que apenas pode (consegue?) ter consciência social e nada mais.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O Acidente

Não se sentia o mesmo após o acidente. Nem mesmo com os meses largos que haviam corrido ou com a fúria de um torpedo ou com a placidez de uma ovelha. Não era a mesma pessoa. E nesse dia o mundo parecia prestes a fechar-se sobre o seu peito, como acontecia de quando em vez. Sentia saudades de quem tinha sido antes da queda no percurso, desse inocente Adão que passeava nu nos cafés e lia livros ao fim da tarde. Voltaste a ser quem eras, diziam-lhe as árvores, alheadas da verdadeira tormenta dentro de si. O certo é que as melhorias eram significativas, notórias, secundárias até, dado o nível de importância que os seus lhes davam e até mesmo ele, que gradualmente adquirira, enfim, capacidade de relativizar. Mas havia aqueles ataques súbitos, despoletados por um qualquer momento ou palavra traumáticos, havia os lugares, havia o fosso e o mato, o tempo e os fármacos. E nesse dia, à tarde, percorreu as ruas e dirigiu na cidade com a inquietude anatematizadora que lhe deixava a alma exangue. Os dias que lhe restavam antes que. Todas essas horas. E o tempo da vida deixava-se sempre sentir como um momento, uma fugaz sensação que permite résteas e arestas que se limam mais ou menos bem. Limpar os cantos à casa. Não, não era o mesmo desde o acidente. Porque não se lembrava da vida antes do acidente. Porque era tudo fragmentos de tinha sido, foi, seria, terá sido. E aí as portas do mundo principiarem em fechar-se e ele prestes a ser esmagado pelo existir, sofrido por demais pelo viver, perdidas que estavam tantas contas que lhe eram queridas. Mas o filme era por ele já sobejamente conhecido, mesmo que lhe custasse que decorridos que estavam tantos meses ainda houvesse manifestações sísmicas repentinas, sem aviso prévio, com ondulações e repercussões que intermitentemente espreitavam. E sentou-se no café, absorvendo toda a malícia e nuvem negra de ser, e pediu o lanche. Eugénia ligou-lhe, disse-lhe que gostava muito de continuar a trabalhar com ele, que sim. Impossível, Eugénia. E então Eugénia desejou-lhe as maiores felicidades e deixou as portas abertas para mais tarde, se mais tarde existisse, e ele sentiu verdade na voz de Eugénia. Uma brecha de luz. Eugénia. Um raio insuspeito. Veio Daniel, anjo de voz grave, e sentou-se com ele. A luz, tremendo, expandia-se ainda espandongada pelas trevas. O jantar. O cisma. Ganhava terreno a noite. Persistência da memória. O acidente. Continuava lutando, o rapaz, contra o que estava dentro de si. E porque o tempo. E porque a morte. E porque a falta de sentido. Continuou o serão e a voz do anjo, à sua frente, dizia-lhe um espelho. E veio Eva à chuva, lavando-se em lágrimas na despedida. O acidente. Mas a razão. Mas as pessoas. Mas o amor.