- Sabe, doutor, acho que poderei vir a ser um assassino em série. Penso até que é uma doença que advém da própria existência. É, por isso, inerente à humanidade.
- Porque diz isso? Eu, por exemplo, não tenciono tornar-me num.
- Pois, doutor, talvez eu esteja mais lúcido do que a maioria. Ou mais cego, dependendo da ordem. Sabe, é que…Bem, digamos que se eu soubesse tudo sobre todos seria inevitável matá-los. Veja o senhor: se eu soubesse os seus defeitos, com certeza o mataria.
- Mas tem consciência de que defeitos toda a gente tem, é tácito.
- Claro está. E é daí que nasce essa minha…tendência. Por isso quero que me interne. Só não matei os meus pais porque amo mais as suas qualidades do que os seus defeitos.
- E os seus?
- Lá está, os meus. Eu, doutor, eu odeio-me porque vivo. Mas seria um defeito meu matar-me, porque incomodaria e – não estou tão certo assim – entristeceria muita gente. E eu não quero incomodar nem entristecer ninguém.
- Mas eu não o posso internar só porque o senhor acha que qualquer dia vai começar a matar toda a gente.
- São necessários factos?
- Obviamente que não. Mas repare, o bom senso não pode enviar toda a gente para os hospitais psiquiátricos – nem os que assim o desejam nem mesmo todos aqueles que o merecem ou deles necessitam. Seria uma enchente.
- Aí está a questão: eu sei que é inevitável e inerente ao ser humano esmagar insectos. Não o digo apenas literalmente, doutor. É o eterno efeito borboleta. Não fazemos a menor ideia de quantas coisas matamos por dia.
- Não estou a acompanhá-lo…
- Veja bem – das duas, uma: a existência lúcida faz de nós potenciais assassinos – meto os suicidas no mesmo saco porque ainda que o feito não seja o mesmo nem tão nefasto, é sempre um acto de morte premeditado –; a maldade não é uma verdade relativa, é absoluta. E, portanto, se estivermos demasiado atentos a ela – só a título de exemplo – nascerá em nós uma vontade divina de exercer justiça. Aliás, reformulo: uma existência demasiado lúcida ou faz de nós assassinos em série ou seres completamente alheados e alienados. Repare que são contrários: o assassino é aquele que vive tão obcecado com a vida que não a suporta; por outro lado, o alheado prefere um autismo em que a existência não é vivida.
- E o senhor enquadra-se apenas no primeiro grupo, é isso?
- Não, não propriamente. Estarei algures entre os dois. Mas tenho também de acrescentar: os artistas são aqueles que verdadeiramente vivem no centro dessa corda bamba. Os artistas criam coisas que põem no mundo. São das criaturas mais atentas à vida e das mais sensíveis às suas vicissitudes. Mas veja que uma obra de arte, seja ela qual for, tem funções diversas e por vezes distintas: são criações e, portanto, símbolo de vida; são também, no entanto, deformações ou formas de matar outras que as antecederam; e há ainda outra coisa curiosa em relação aos artistas: se por um lado os artistas têm de estar extremamente atentos à vida, por outro, convém-lhes um pouco de alienação e alheamento para poderem criar.
- Então, entendamo-nos: o senhor é um artista?
- Estar no meio não faz de mim um artista, não. Isso seria uma falácia. Porque nem todos têm o que é necessário para se fazer arte. Digamos que se eu tivesse descoberto já que arte mais me serve, seria um artista. Mas não o sou – sou, sim, um pré-assassino em série.
- Não o creio, tem demasiado respeito pela vida e pela bondade das pessoas.
- Mas, doutor, não ouviu nada do que tenho vindo a dizer? É precisamente essa a razão.
- E então quer mesmo que o interne?
- Penso ser essa a escolha mais indicada.
- Mas sabe que lhe serão prescritos fármacos no hospital psiquiátrico, certo?
- Vê a que ponto a humanidade chegou? Estamos todos fodidos, de uma forma ou de outra. Só os estúpidos não conseguem ver. Ou simplesmente se recusam. Precisamos que nos digam como sermos felizes, precisamos que nos digam como encontrar o amor, como comer saudavelmente, como viver, etc., etc., etc.
- Mas isso sempre foi assim, homem.
- O que mais reforça a minha tese. Somos criaturas inerentemente fracas, defeituosas – creio mesmo que a humanidade nunca deveria ter surgido. Ou, pelo menos, nunca deveria ter chegado ao topo da cadeia alimentar. Foi tudo um erro da natureza.
- Não acredita em Deus?
- Deus é a maior prova da falibilidade humana.
- Não da demasiada lucidez?
- Não, isso é a filosofia.
- Muito bem. Tem preferência por algum hospital?
- Qualquer um onde me ponham num colete-de-forças.
- E se algum dia descobrir que tudo o que disse não é verdade?
- Porque diz isso? Eu, por exemplo, não tenciono tornar-me num.
- Pois, doutor, talvez eu esteja mais lúcido do que a maioria. Ou mais cego, dependendo da ordem. Sabe, é que…Bem, digamos que se eu soubesse tudo sobre todos seria inevitável matá-los. Veja o senhor: se eu soubesse os seus defeitos, com certeza o mataria.
- Mas tem consciência de que defeitos toda a gente tem, é tácito.
- Claro está. E é daí que nasce essa minha…tendência. Por isso quero que me interne. Só não matei os meus pais porque amo mais as suas qualidades do que os seus defeitos.
- E os seus?
- Lá está, os meus. Eu, doutor, eu odeio-me porque vivo. Mas seria um defeito meu matar-me, porque incomodaria e – não estou tão certo assim – entristeceria muita gente. E eu não quero incomodar nem entristecer ninguém.
- Mas eu não o posso internar só porque o senhor acha que qualquer dia vai começar a matar toda a gente.
- São necessários factos?
- Obviamente que não. Mas repare, o bom senso não pode enviar toda a gente para os hospitais psiquiátricos – nem os que assim o desejam nem mesmo todos aqueles que o merecem ou deles necessitam. Seria uma enchente.
- Aí está a questão: eu sei que é inevitável e inerente ao ser humano esmagar insectos. Não o digo apenas literalmente, doutor. É o eterno efeito borboleta. Não fazemos a menor ideia de quantas coisas matamos por dia.
- Não estou a acompanhá-lo…
- Veja bem – das duas, uma: a existência lúcida faz de nós potenciais assassinos – meto os suicidas no mesmo saco porque ainda que o feito não seja o mesmo nem tão nefasto, é sempre um acto de morte premeditado –; a maldade não é uma verdade relativa, é absoluta. E, portanto, se estivermos demasiado atentos a ela – só a título de exemplo – nascerá em nós uma vontade divina de exercer justiça. Aliás, reformulo: uma existência demasiado lúcida ou faz de nós assassinos em série ou seres completamente alheados e alienados. Repare que são contrários: o assassino é aquele que vive tão obcecado com a vida que não a suporta; por outro lado, o alheado prefere um autismo em que a existência não é vivida.
- E o senhor enquadra-se apenas no primeiro grupo, é isso?
- Não, não propriamente. Estarei algures entre os dois. Mas tenho também de acrescentar: os artistas são aqueles que verdadeiramente vivem no centro dessa corda bamba. Os artistas criam coisas que põem no mundo. São das criaturas mais atentas à vida e das mais sensíveis às suas vicissitudes. Mas veja que uma obra de arte, seja ela qual for, tem funções diversas e por vezes distintas: são criações e, portanto, símbolo de vida; são também, no entanto, deformações ou formas de matar outras que as antecederam; e há ainda outra coisa curiosa em relação aos artistas: se por um lado os artistas têm de estar extremamente atentos à vida, por outro, convém-lhes um pouco de alienação e alheamento para poderem criar.
- Então, entendamo-nos: o senhor é um artista?
- Estar no meio não faz de mim um artista, não. Isso seria uma falácia. Porque nem todos têm o que é necessário para se fazer arte. Digamos que se eu tivesse descoberto já que arte mais me serve, seria um artista. Mas não o sou – sou, sim, um pré-assassino em série.
- Não o creio, tem demasiado respeito pela vida e pela bondade das pessoas.
- Mas, doutor, não ouviu nada do que tenho vindo a dizer? É precisamente essa a razão.
- E então quer mesmo que o interne?
- Penso ser essa a escolha mais indicada.
- Mas sabe que lhe serão prescritos fármacos no hospital psiquiátrico, certo?
- Vê a que ponto a humanidade chegou? Estamos todos fodidos, de uma forma ou de outra. Só os estúpidos não conseguem ver. Ou simplesmente se recusam. Precisamos que nos digam como sermos felizes, precisamos que nos digam como encontrar o amor, como comer saudavelmente, como viver, etc., etc., etc.
- Mas isso sempre foi assim, homem.
- O que mais reforça a minha tese. Somos criaturas inerentemente fracas, defeituosas – creio mesmo que a humanidade nunca deveria ter surgido. Ou, pelo menos, nunca deveria ter chegado ao topo da cadeia alimentar. Foi tudo um erro da natureza.
- Não acredita em Deus?
- Deus é a maior prova da falibilidade humana.
- Não da demasiada lucidez?
- Não, isso é a filosofia.
- Muito bem. Tem preferência por algum hospital?
- Qualquer um onde me ponham num colete-de-forças.
- E se algum dia descobrir que tudo o que disse não é verdade?
- Nesse dia estarei, com certeza, louco.
Ricardo X. Fonseca, Os diálogos de Adão