terça-feira, 1 de julho de 2008

A Estrada

A estrada parecia-me cada vez mais longa à medida que a ia percorrendo, sob o calor abrasador de um Verão húmido e sufocante. O corpo que levava não era o meu, era como se estivesse a ver o mundo através dos olhos de uma velha que já não podia com a carcaça. Cada vez mais me sentia a morrer, sentia a velha a morrer, mas o meu olhar mantinha-se alerta, lúcido e objectivo. Todas as pessoas com quem me cruzava me olhavam aterrorizadas e sentia-me a tropeçar em mim mesmo, no corpo da velha que se esmorecia. E foi então. Prodígio da gravidade, prodígio do calor, prodígio de uma doença, prodígio de todos os prodígios aqui mencionados juntos, caí. Encostado a um canto no meio da calçada, sabia que ia morrer. E estava preparado, sentia o meu olhar preparado para pôr termo à vida do corpo da velha e deixar a minha consciência continuar a viver e analisar o ambiente à volta. Saber como seria. Saber o que se iria passar depois.
Dentro de mim, eu conseguia ver as pessoas fixadas no meu corpo. Umas abananavam-me, outras esbofeteavam-me, outras gritavam com as mãos nas respectivas bocas, outras faziam menção de chamar alguém que me acudisse, outras chamavam mesmo, outras simplesmente passavam. E foi destas de que particularmente gostei mais. Porque a morte devia ter tanta importância como ver um homem a mijar na rua, era olhar e continuar a andar, fazendo a cara e comentário que nos bem apetecesse. Sabia que a minha respiração iria parar mais cedo ou mais tarde e o último suspiro estaria por perto. Sabia tudo isto e no entanto estava sóbrio, com um olhar limpo e objectivo, como um samurai japonês que sabe que vai morrer mas que mantém a sua honra intacta. Era isso mesmo, sentia-me intacto na minha consciência. Lembro-me de ter pensado na invalidez e leviandade da carne em relação ao poder e persistência do espírito. E assim morri.

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