As Mãos, o Natal
Uma sombra abateu-se sobre a casa. Aquela casa perdida entre as outras, naquela rua estreita sem saída, presa àquela terra que agarrava com força as raízes, que absorvia a vida toda, a alegria, o riso, a vitalidade, o sangue das pessoas. À volta, o que tinha um dia sido arvoredo era agora um número reduzido de árvores no fim de vida, poucas com folhas, quase todas magras e definhadas. E a casa resistia como podia. As trevas começaram a adensar-se na noite de natal, quando o ar se polui de gases e foguetes, e os rostos são de festa. Naquela casa, também os rostos das pessoas que lá moravam tentaram ser de festa, mas as raízes rangeram, tremeram e desistiram. Aos poucos, a energia continuava a ser sugada pela terra, como uma seringa que extrai sangue das veias das pessoas, aspirando o mínimo átomo de contentamento, todas as partículas de vida, todo o brilho dos olhos das pessoas da casa. A ceia de natal iniciara-se e eram três os comensais. Olhavam uns para os outros enquanto enfiavam lentamente a comida na boca. A toalha, com motivos alusivos à época, impecável e brunida para a ocasião, parecia derreter-se à medida que o som da televisão aumentava de volume. No ecrã, mostrava-se as últimas catástrofes do mundo, os dilúvios, as decapitações, os reis que cortavam mãos ao povo, os padres que violavam as meninas de vermelho na floresta, a crucificação dos pretos e dos que se vestiam de preto, a doença que tornava podres e disformes as crianças que nasciam de ventres infectados, e também o sorriso branco e largo das pessoas que sabiam cozinhar. A tudo isto os três habitantes daquela casa pareciam indiferentes. Eram só eles, a toalha e a casa. Havia doces para sobremesa, postas de lado que estavam as espinhas e ossos, e vinho quente para aquecer a pele. Os olhos de cada um dos que se sentavam à mesa iam adquirindo paulatinamente uma cor negra que se alastrava pelo branco, entrando pelas pálpebras dentro com desenhos que pareciam os ramos das árvores lá fora. Rapidamente, a mancha negra começou-se a espalhar pela pele. Os doces de natal eram devorados em grandes pedaços e o vinho engolido em tragos espaçados e demorados. Ainda o som da televisão. Os foguetes lá fora. Jesus tinha nascido. Era meia-noite. As sombras que circundavam a casa e a sobrevoavam continuavam a crescer, estavam prestes a devorá-la. Não havia prendas. Qualquer réstia de desejo de surpreender porque era natal há muito que havia deixado aquelas paredes. Quando a ceia terminou, olharam os três uns para os outros e deram as mãos. Estavam quase negros de cima a baixo. Sentiam a terra a sugá-los e as sombras a devorá-los. Sabiam que este era o fim. A toalha, derretida, era agora um líquido vermelho espesso que escorria da mesa. Agarradas que estavam as mãos umas às outras, os três fecharam os olhos com força e porventura alguma confiança e fé. A casa precipitou em desabar, primeiro o chão que se abriu, depois o tecto que foi arrancado e arremessado para a noite, e por fim as paredes que caíram. Sentiram os seus corpos a serem esticados, puxados por todos os lados, prestes a explodirem. Ouviu-se os primeiros tecidos a rasgarem. As roupas pouca resistência ofereceram, assim como os cabelos e os olhos. A pele começou a partir e abrir em fendas finas e profundas. De seguida, a carne foi lacerada e arrancada dos ossos, que começaram a separar-se uns dos outros. Tudo aconteceu sem gritos nem barulho algum. Os foguetes continuaram. Era natal. Só restaram as mãos sobre a mesa, completas, agarradas com força umas às outras.
Uma sombra abateu-se sobre a casa. Aquela casa perdida entre as outras, naquela rua estreita sem saída, presa àquela terra que agarrava com força as raízes, que absorvia a vida toda, a alegria, o riso, a vitalidade, o sangue das pessoas. À volta, o que tinha um dia sido arvoredo era agora um número reduzido de árvores no fim de vida, poucas com folhas, quase todas magras e definhadas. E a casa resistia como podia. As trevas começaram a adensar-se na noite de natal, quando o ar se polui de gases e foguetes, e os rostos são de festa. Naquela casa, também os rostos das pessoas que lá moravam tentaram ser de festa, mas as raízes rangeram, tremeram e desistiram. Aos poucos, a energia continuava a ser sugada pela terra, como uma seringa que extrai sangue das veias das pessoas, aspirando o mínimo átomo de contentamento, todas as partículas de vida, todo o brilho dos olhos das pessoas da casa. A ceia de natal iniciara-se e eram três os comensais. Olhavam uns para os outros enquanto enfiavam lentamente a comida na boca. A toalha, com motivos alusivos à época, impecável e brunida para a ocasião, parecia derreter-se à medida que o som da televisão aumentava de volume. No ecrã, mostrava-se as últimas catástrofes do mundo, os dilúvios, as decapitações, os reis que cortavam mãos ao povo, os padres que violavam as meninas de vermelho na floresta, a crucificação dos pretos e dos que se vestiam de preto, a doença que tornava podres e disformes as crianças que nasciam de ventres infectados, e também o sorriso branco e largo das pessoas que sabiam cozinhar. A tudo isto os três habitantes daquela casa pareciam indiferentes. Eram só eles, a toalha e a casa. Havia doces para sobremesa, postas de lado que estavam as espinhas e ossos, e vinho quente para aquecer a pele. Os olhos de cada um dos que se sentavam à mesa iam adquirindo paulatinamente uma cor negra que se alastrava pelo branco, entrando pelas pálpebras dentro com desenhos que pareciam os ramos das árvores lá fora. Rapidamente, a mancha negra começou-se a espalhar pela pele. Os doces de natal eram devorados em grandes pedaços e o vinho engolido em tragos espaçados e demorados. Ainda o som da televisão. Os foguetes lá fora. Jesus tinha nascido. Era meia-noite. As sombras que circundavam a casa e a sobrevoavam continuavam a crescer, estavam prestes a devorá-la. Não havia prendas. Qualquer réstia de desejo de surpreender porque era natal há muito que havia deixado aquelas paredes. Quando a ceia terminou, olharam os três uns para os outros e deram as mãos. Estavam quase negros de cima a baixo. Sentiam a terra a sugá-los e as sombras a devorá-los. Sabiam que este era o fim. A toalha, derretida, era agora um líquido vermelho espesso que escorria da mesa. Agarradas que estavam as mãos umas às outras, os três fecharam os olhos com força e porventura alguma confiança e fé. A casa precipitou em desabar, primeiro o chão que se abriu, depois o tecto que foi arrancado e arremessado para a noite, e por fim as paredes que caíram. Sentiram os seus corpos a serem esticados, puxados por todos os lados, prestes a explodirem. Ouviu-se os primeiros tecidos a rasgarem. As roupas pouca resistência ofereceram, assim como os cabelos e os olhos. A pele começou a partir e abrir em fendas finas e profundas. De seguida, a carne foi lacerada e arrancada dos ossos, que começaram a separar-se uns dos outros. Tudo aconteceu sem gritos nem barulho algum. Os foguetes continuaram. Era natal. Só restaram as mãos sobre a mesa, completas, agarradas com força umas às outras.
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