segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Faces in the Water




Há livros que nos marcam pela sua intensidade formal, discursiva, descritiva e de conteúdo. Faces in the Water, de Janet Frame é um excelente exemplo de como podemos ser agredidos por uma mão que nos esbofeteia e não pede nunca desculpa. Até ao fim.


Assustador, este romance da escritora neo-zelandesa foi descrito como um verdadeiro relato de loucura. Eu arriscaria dizer que é muito mais do que isso - é talvez um relato de como a loucura pode ser vista através de diferentes perspectivas: do louco (e caímos aqui num terreno perigoso), do que se convenceu um dia que estava louco, daqueles que fazem da loucura o seu instrumento de trabalho, dos que convivem diariamente com ela e daqueles que a visitam de muito em muito tempo, como se fosse uma doença contagiosa.


Istina começa e acaba o livro exactamente como começou: sem explicação para nada e sem certezas de alguma coisa. Se é aconselhada a adquirir um total esquecimento daquilo por que passou no hospital psiquiátrico, com vista a uma recuperação da vida dita "normal", uma pergunta fica no ar aquando o desfecho: "And by what I have written in this document you will see, won't you, that I have obeyed her?". É mais um estalo na cara de um leitor que chega a pensar que o pesadelo da personagem chegava a um fim.


As transferências de secção para secção, de ala para ala são descritas como um inferno que se aguenta porque custa mais ver a falta de humanidade de quem é suposto tomar conta dos pacientes. São animais que são castigados simplesmente por serem humanos e terem necessidades típicas de uma pessoa. Os tratamentos electro-convulsivos são encarados como o maior pesadelo dos pacientes, como se uma descarga eléctrica pudesse acalmar as bestas que se exaltam por falta de liberdade e respeito. Mas sempre de uma perspectiva pouco ou nada crítica, como se aquilo fosse o caminho que o mundo real e sano achava correcto e, consequentemente, os pacientes só não achavam porque a lucidez há muito tempo havia abandonado os seus cérebros.

Em termos de forma, a linguagem e construção sintáctica são dignas de deslumbramento - se os termos utilizados são por vezes eruditos para logo a seguir se tornaram banais, nunca são empregues à toa, sem uma preocupação com a ordem e falta ou presença de pontuação. Há como se fosse um "stream of consciousness" que, tendo em conta o tema do romance, é por vezes um verdadeiro turbilhão ordenado. Há caos nas palavras, há uma beleza singular, como se Istina fosse uma flor levada por um furacão. A construção sintáctica faz com que o relato pareça um longo poema, com frases e orações que se extendem para lá do habitual no mundo anglo-saxónico.

Há momentos cómicos, momentos de pura tristeza, sinceridade e solidariedade para com as personagens, assim como de absoluto terror e compaixão. A lobotomia é apresentada como a resposta para todos os males: adquirir uma nova personalidade e aliviar a tensão são os mecanismos de resgate de toda uma sanidade. Mas, como inquire a personagem principal, e se a antiga personalidade fica apenas adormecida num recanto profundo e depois, anos mais tarde, regressa para se vingar de maneira poderosa?


Apesar do que Janet Frame afirmava, Faces in the Water parece ser um terrível e arrepiante relato quasi autobiográfico da própria autora, que só se salvou de uma lobotomia porque tinha um talento nato e potente para a escrita.


A ler.

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