terça-feira, 29 de dezembro de 2009

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

o lobo e o cão - predadores os dois?

De que se alimenta um homem quando alimentar-se de si mesmo se torna...falta a palavra. Nenhuma parece adequada. E isto fica a meio.

As Marias de Portugal

Esqueci eu ou foram esquecidos eles?

sábado, 19 de dezembro de 2009

Des

e
se
o
mundo
( )
hoje?

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

do amor

Amy Winehouse - "Love is a Losing Game."

Sim, é foleiro pôr um vídeo da Amy Winehouse num blogue (é?). Mas a verdade é que esta canção toca-me tanto, que fico a pensar se serei a voz que ela canta ou, inversamente, a voz que existe do outro lado e que, concludentemente, torna estas coisas do 'amor' (qual dos quatro amores da Grécia antiga será aquele a que me refiro/se refere a música?) numa espécie de parede irrevogável, um jogo perdido, uma completa e, por vezes, desesperante falta/perda de fé em tudo o que isso um dia significou para mim. Já perdi três mãos à conta do 'amor'. E era tudo muito bonito até me aperceber que tudo, exactamente tudo, apodrece e morre. Alguém me pode explicar a razão pela qual continuar a procurar esse sentimento inocente se isso nunca basta e nunca satisfaz e, reforço, acaba, termina, foge, desfaz-se, perde-se, afoga-se, arde até às cinzas de tanto arder, queima por ser chama e sucumbir às leis que fazem a cera derreter? E porque digo eu estas coisas com vinte e três anos? Porquê? Por que razão tenho eu uma espécie de muro intransponível, porque sinto eu modorra e indolência ao pensar no 'amor', e uma profunda alegria/apatia (podem estas duas palavras ir juntas com uma barra entre elas?) em simplesmente recusar aquilo a que chamam 'amar'?

apropriação a meu bel-prazer

Sentei-me repentinamente na borda da cama, e olhei para o meu sexo com espanto. «Ele» nunca tinha pensado em ninguém senão nele mesmo. Eu era uma criança. Os meus amigos eram crianças. Todos nós era como se tivéssemos afinal só dezasseis anos ainda. E não seria que quase todos os homens continuavam assim? Que nenhum crescia para fora de si mesmo? E não era isso que o mundo inteiro desejava que continuássemos a ser? Não seria que toda a gente tinha medo de dar-se, porque tinham todos medo de perder o pouco que tinham? Não seria que toda a gente apenas se emprestava como quem empresta dinheiro a juros? O meu sexo fingia uma grande distracção, uma serena inocência. Mas não comprava ele o seu prazer, sem pensar no prazer alheio? Não lho comprava eu, a dinheiro, a cálculos e contactos, a pensamentos, a atenções solícitas como se ele fosse outra pessoa que não eu mesmo? «Ele», de repente, começou a palpitar e a entumescer-se. Era como se quisesse dizer-me que tudo isso seria verdade, ele concordava, mas que ele podia muito mais do que eu...Ele era o futuro. Oh, não por poder gerar. Isso era precisamente o que o prendia. Mas por poder dar e tomar prazer, por ser a minha liberdade. Liberdade de quê? (...)
Sinais de fogo, Jorge de Sena

Some kind of explanation is worth the shot

"It's not like I made my self a list
of new and different ways to murder your heart
I'm just a painting that's still wet,
if you touch me I'll be smeared,
you'll be stained,
stained for the rest of your life

(...)

There's a crack in my soul
You thought it was a smile

Whatever doesn't kill you...is gonna leave a scar
Whatever doesn't kill you...is gonna leave a scar
leave a scar
leave a scar
Whatever doesn't kill you
is gonna leave a scar.

I'm more like a silver bullet,
than I'm like a gun, not easy to hold.
I'm moving fast and if I stay inside your heart
I'm certain that this will be
the end of your life.

whatever doesn't kill you...is gonna leave a scar
whatever doesn't kill you...is gonna leave a scar
leave a scar
leave a scar
whatever doesn't kill you
is gonna leave a scar.

(...)"

Marilyn Manson - "Leave a Scar"

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Descobrindo

Ok, esta série é simplesmente brilhante. Penso que já saiu há quatro anos atrás mas eu só a descobri muito recentemente. Este é apenas um excerto de um dos episódios. Vale mesmo a pena ver. Através do website www.ovguide.com consegue-se ver quase todos os episódios da primeira e segunda séries.

Enjoy!

arquitectando esqueletos pt2

Queria nunca ter vivido. Queria nunca te ter visto depois de morto.
O esperma saiu e eu esmurrei as gavetas das meias e cuecas.
E o rapaz da sala de jogos eras tu morto,
eu fodia com a tua morte e vinha-me.
O rapaz preto a eriçar-me os pêlos e o medo de que me estivesses a ver. Eu descobria-me
e tu
morreste-me.
Vi-te em todos os momentos das nossas vidas.
E eu preso no meu corpo que não soube responder a tudo.
A tua mulher chorava num dos quartos e eu beijei-a com a minha boca nojenta e senti-me porco e indigno
E o tempo da vida deixava-se sempre sentir como um momento
O jantar. O cisma.
ceifou metade de um pulmão.
Ganhava terreno a noite.
um jazigo mais belo do que a tua própria casa e quase tão valioso. Nunca soube, naquele tempo, que fazer-te uma homenagem assim era ridículo
Quantas asas é possível cortar-se a um homem?
voltava a mim a tua imagem
(penso eu que olhei)
existe a morte e o eterno sofrimento de nos lembrarmos da vida de quem morre e antes é nosso, garantidamente para sempre.
Há quantos anos foi que tudo aconteceu?

monólogo

Chove e apetece-me dar uma volta à chuva. Ver o mar, talvez, cala-se e olha para o chão, mas e se me molho, o que me acontece, isto nem o diz em voz alta, há sempre a possibilidade de uma gripe, não posso, não, recomeça a falar, até porque não seria bom ficar doente antes do natal, do natal, suspende o que vai dizer, mas por que razão não me molho, posso sempre usar um guarda-chuva, pensa em voz alta, sim, posso, e molho só o essencial, os pés, que de qualquer modo estarão calçados, olha para os sapatos encostados a um canto, nenhum mal maior há-de vir daí, ela dorme na minha cama e não me apetece deitar-me junto dela, olha para ela, e não tenho sono e está calor, sacode a t-shirt, e também não quero ler nem ver um filme nem ver televisão nem escrever, que porcaria, só me apetece andar e ouvir música, olha para o mp3, vou, não vou, fala indeciso, o gajo também desmarcou-se à última da hora e eu que me foda, que caminhe sozinho, só para ver o mar, só para ver o mar, olha para o tecto sonhador, é isso, vou ver o mar.

domingo, 6 de dezembro de 2009

coisas

Nem sempre tenho de conseguir respirar fundo.
Nem sempre tenho de me rir.
Nem sempre tenho de gostar de viajar.
Nem sempre tenho de me deitar a horas.
Nem sempre tenho de não ter medo.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

San Francisco





































Não me peçam para explicar a minha recente viagem a San Francisco. Não sei bem o que dizer sobre a cidade, senão que não sei se gostei mas que tenho umas ganas de lá voltar e não as consigo racionalizar. E ainda estou para perceber por que razão na livraria de literatura gay e lésbica havia um livro do António Lobo Antunes.
















quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A palavra

Por vezes, ignorante que sou, parece-me presunçoso que se ache que se pode definir o conceito de 'palavra'. O que é uma palavra? É-me estranho que para se definir 'palavra' se tenha de usar palavras. É redundante, no mínimo, e extremamente irónico e inglório. Matem-me os linguistas se estiver a dizer barbaridades. Ainda assim, que finalidade tem a 'palavra', a 'língua', se há coisas, estados, que são absolutamente inomináveis? O próprio facto de serem inomináveis justifica o argumento de que a palavra de pouco nos serve e mais vezes do que desejaríamos. E, no entanto, há uma palavra que é 'inominável' mas que, ao querer dizer tanto, diz nada, porque é deficiente e insuficiente. Haverá palavras nas línguas a menos ou a mais? Repito: o que é e para que serve exactamente uma palavra?

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

ler

---"To grasp the shadowy and fantasmal form of a book, to hold it fast, to turn it over and survey it at leisure - that is the effort of a critic of books, and it is perpetually defeated. Nothing, no power, will keep a book steady and motionless before us, so that we may have time to examine its shape and design. As quickly as we read, it melts and shifts in the memory; even at the moment when the last page is turned, a great part of the bok, its finer detail, is already vague and doubtful. A little later, after a few days or months, how much is really left of it? A cluster of impressions, some clear points emerging from a mist of uncertainty, this is all we can hope to possess, generally speaking, in the name of a book. The experience of reading it has left something behind, and these relics we call by the book's name; but how can they be considered to give us the materal for judging and appraising the book? Nobody would venture to criticize a building, a statue, a picture, with nothing before him but the memory of a single glimpse caught in passing; yet the critic of literature, on the whole, has to found his opinion upon little more. Sometimes it is possible to return to the book and renew the impression; to a few books we may come back again and again, till they do in the end become familiar sights. But of the hundreds and hundreds of books that a critic would wish to range in his memory, in order to scrutinize and compare them reflectively, how many can he expect to bring into a state of reasonable stability? Few indeed, at the best; as for the others, he must be content with the shapeless, incoherent visions that respond when the recollection of them is invoked.
---It is scarcely to be wondered at if criticism is not very precise, not very exact in the use of its terms, when it has to work at such a disadvantage. Since we can never speak of a book with our eye on the object, never handle a book - the real book, which is to the volume as the symphony to the score - our phrases find nothing to check them, immediately and unmistakably, while they are formed. Of a novel, for instance, that I seem to know well, that I recall as an old acquaintance, I may confidently begin to express an opinion; but when, having expressed it, I would glance at the book once more, to be satisfied that my judgment fits it, I can only turn to the image, such as it is, that remains in a deceiving memory. The volume lies before me, no doubt, and if it is merely a question of detail, a name or a scene, I can find the page and verify my sentence. But I cannot catch a momentary sight of the book, the book itself; I cannot look up from my writing and sharpen my impression with a straight, unhampered view of the author's work; to glance at a book, though the phrase is so often in our mouths, is in fact an impossibility. The form a novel - and how often a critic uses that expression too - is something that none of us, perhaps, has ever really contemplated. It is revealed little by little, page by page, and it is withdrawn as fast as it is revealed; as a whole, complete and perfect, it could only exist in a more tenacious memory than most of us have to rely on. Our critical faculty may be admirable; we may be thoroughly capable of judging a book justly, if only we could watch it at ease. But fine taste and keen perception are of no use to us if we cannot retain the image of the book; and the image escapes and evades us like a cloud."
Percy Lubbock, The Craft of Fiction

Poequasia


O homem:

Eu hei pacificado o mundo à minha volta,
Todos os olhos em meu redor,
Todas as pétalas em meu regaço,
Dêem-me agora o sono dos justos.


O homem fuma cigarros intermináveis,
Ouvindo as trompetas dos pequenos passos,

pequenos,

E permanece firme na cadeira, os olhos cansados,
Ouvindo a modorra do futuro,
Passado dos passados, sentindo
A bateria marcar ritmos até ao dia da sua morte.

sábado, 21 de novembro de 2009

estranhos impulsos

Às vezes paro e penso: qual é o objectivo de ter um blogue, especialmente como este? Quem realmente me lê desse lado? Importo-me eu que alguém me leia? Sim, claro. Mas porquê? Afinal, qual a razão da necessidade de nos "mostrarmos" num blogue?

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Os pássaros negros de asa laranja

A caminho da biblioteca invadiu-se-me uma felicidade quase incontrolável, explosiva, não fosse eu um moço recatado e respeitoso dos preceitos que estabelecem as fronteiras entre a sanidade e a loucura. Os agentes responsáveis? Esta canção da Marisa Monte e a beleza dos sons juspostos com as palavras. E nem precisei de ter Deus como um império para não me sentir sozinho no mundo. Mas acredito que as flores que eu oferto/ofertei nunca morrerão. Um ramo de uma árvore que se estendia por cima de mim caiu sem me atingir. E agora sei de onde vêm os anjos. O último acorde da música senti-o no pousar de pássaros negros com asas laranja.
O vídeo não é o melhor, mas o momento foi:


terça-feira, 17 de novembro de 2009

Correcção

Há quem diga que eu sou um jovem que com tão tenra idade já se sente desiludido e cansado do mundo. Eu respondo que não. O que se passa é exactamente o contrário. Por ser tão apaixonado pela vida e pelo mundo é que me sinto muitas vezes incapacitado de os aproveitar ao máximo. E isso, sim, isso entristece-me profundamente e cria ciclos que podem parecer desgosto perante a existência. Mas ela apenas me dói quando não a posso existir profundamente. Mas quando isso acontece, um simples fio de relva pode fazer-me chorar, de tão naturalmente perfeito que pode ser.

Talvez o problema seja que ao contrário de muita gente eu tenho consciência em demasia de que adoro viver. E isso origina dores que muitas outras pessoas não podem nem conseguem entender. Porque o universo não faz sentido nenhum, nem as dimensões, nem o monótono mexer de um dedo, se estivermos atentos aos pormenores; isso é assim e eu desconfio e confio que será sempre dessa maneira. É o caso que a dissociação de tudo o que existe é uma coisa assustadora - a pergunta/resposta que podemos sempre pôr e que é concomitantemente consolo e miséria é a seguinte: se nada faz sentido por que raio é que sentimos tudo o que sentimos por outras pessoas, pelo nosso contacto com o que nos rodeia, pelo simples prazer ou desconforto de manejar o cérebro e fazê-lo divertir-nos ou aterrorizar-nos?

Porque vale a pena gostar de estar vivo é sempre possível que alguns desejem a morte. Não é o meu caso. Mas talvez já tenha sido ou ainda seja sem eu notar.

E se sentirmos o que quer que seja é sempre bom sinal, para o mal ou para o bem.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

fairy king

O tipo de deboche que nós europeus do sul vemos dentro e fora de portas (chamem-lhe deboche, divertimento, maluqueira, o que quiserem) acontece aqui nos Estados Unidos, pelo menos na Califórnia, somente em festas em casa ou bares/discotecas. O curioso é que nesse aspecto é perfeitamente reconhecível que, apesar das diferenças no modo de viver e sair à noite (e são algumas), as pessoas continuam a ser pessoas. E se é também verdade que há nuances culturais que devem ser aprendidas e respeitadas, aqui e não só, no que à interacção e relacionamentos sociais concerne, o apreciado deus Baco (para apenas citar o romano) trata de fazer com que muitas dessas aparentemente adamastoras "leis" que marcam o facto de eu ser português e interagir com um americano se esbatam até vermos que essencialmente somos todos os mesmos animais sedentos de carne. O que muda, porventura, é a parte que não é física. E mesmo essa...mesmo essa, bem, que interessa essa parte se caem uvas do céu numa festa?

sábado, 14 de novembro de 2009

Caixa de Pandora

Há um sítio muito interessante e polivalente na rede da internet chamado Pandora Radio. O que se faz? Escolhe-se um artista ou música e o sistema trata de encontrar músicas desse artista e depois comporta-se como uma estação musical, passando canções que se relacionam com o som que se escolhe. Pode-se criar múltiplas estações e, dependendo do estado de espírito (pessoalmente, para limpezas, costumo escolher a estação Buraka Som Sistema) ou do objectivo do momento, disfrutar de uma sequência minimamente coerente. O curioso que me aconteceu hoje, usando o Pandora, foi que escolhi a minha estação da Lady Gaga. Britney e Christina surgiram logo de seguida, Justin e Madonna também. A surpresa foi quando a estação começou a tocar Coldplay.
E há uma frase que tenho usado muito recentemente, dado o meu contacto com a cultura americana: "These things happen." E, sim, acontecem. E estou para ver por que carga de água Coldplay tem algo a ver com os artistas mencionados.
Aqui vai o link:

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Publicidade

Sempre fomos bons a produzir anúncios.

Este mais antigo penso que ganhou alguns prémios: http://www.youtube.com/watch?v=JN8d9c8abtE


Este acaba de ganhar um prémio internacional para o melhor anúncio sobre a prevenção da sida:

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Salvação (?)

"Les oiseaux qu'on met en cage
Peuvent-ils encore voler?
Les enfants que l'on outrage
Peuvent-ils encore aimer?"

Esmeralda, "Les oiseaux qu'on mette en cage." Notre Dame de Paris

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

homenagem à tragédia

Emiliana Torrini - "Gollum´s Song"

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

lost poetry

Sailing through seven seas and more,
hungry we are forever for something else.
And it may be that our ship never really finds any land,
it may be that the tempests never fade;
And though we are traveling lost in time
our clocks tick with each of our heartbeats.

(lost text)


Sailing the seven seas and more,
are we not always wishing to be someone else?
And, alas, our ship finds the isles
baffed up by golden winds and drowned in divine liquor!
It could be that if we stopped (lost text)
(lost text)

the tempests faded and yet our
hearts grieve the darkness that was lost.
(lost text)

The clocks have stopped...

anonymous English poet from the 17th C

terça-feira, 3 de novembro de 2009

quatro pios na noite


1. Por mais que estejamos, em última instância, sozinhos, nunca estamos realmente sozinhos. É uma estranha dicotomia que opera na vida de uma pessoa. Nunca seríamos eternos se não morrêssemos, do mesmo modo que nunca viveríamos, criada que foi a "sociedade", se não houvesse mais pessoas.



2. Não é coisa nova que eu diga que as cicatrizes físicas que carregamos são quase a mesma coisa que aquelas que nos afectam o que não é biológico. E também não é novidade se eu afirmar que a grande diferença entre umas e outras é que a maior parte das cicatrizes no corpo são mais fáceis de esquecer (aqui perdoar-me-ão as pessoas que vivem com marcas na face, por exemplo) do que as da chamada "alma". Muitos teóricos que se debruçam sobre o mecanismo da memória já o afirmaram (Marc Augé, para citar apenas um) e eu reforço: se conseguíssemos esquecer certos momentos e acontecimentos que nos perturbaram maliciosamente seria muito mais fácil lidar com tudo o que está inerente à existência. Mas também perderíamos muito do bom que adquirimos. Resta saber o que vale mais: o sofrimento de viver com cicatrizes que nunca realmente cicatrizam ou a amnésia que pode muito bem matar depressões.



3. Vai um grande espaço entre distância física e distância mental. Hoje em dia em vinte horas estamos em qualquer parte do mundo. O que são vinte horas? Quase nada, o tempo de ler dois, três livros, ver dois ou três filmes e dormir, contando que estejamos a viajar. E se carregarmos o nosso barulho de fundo connosco o nosso peso aumenta tantas vezes quantas nos imaginarmos de volta ao ninho. A questão, claro está, é o receio de que o ninho já não seja o mesmo ninho e que o território longínquo não nos providencie um outro. Em parte, estar num sítio novo é complicado porque o local é alheio a nós (ou nós somos-lhe alheios), mas a grande fatia daquilo que este tipo de desassossego é feito é a liminalidade. Ou talvez isto tudo seja parvoíce minha.



4. E fica um desenho que fiz e colori. Não tenho jeito absolutamente nenhum para estas coisas. O curioso é que pintei o "ser" que desenhei com cores que lembram a bandeira portuguesa e apenas no fim notei isso. Vá-se lá saber as partidas que nós pregamos a nós mesmos. O título é "The Howl".



segunda-feira, 2 de novembro de 2009

da descontinuidade que é a ficção

"What makes history impossible is what makes story possible."

Charles E. May, The New Short Story Theories

sábado, 31 de outubro de 2009

mensagens subliminais

Sweet Dreams, Kirsten lepore

Não percebo bem a relação do queque com o vegetal. É...estranha...

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

o canto do mar

...
It may be that the gulfs will wash us down;
It may be we shall touch the Happy Isles,
And see the great Achilles, whom we knew.
Tho' much is taken, much abides; and tho'
We are not now that strength which in old days
Moved earth and heaven; that which we are, we are;
One equal temper of heroic hearts,
Made weak by time and fate, but strong in will
To strive, to seek, to find, and not to yield.

"Ulysses", Tennyson

sábado, 24 de outubro de 2009

a vida dos animais

"...Os animais não podem ser humilhados ou destruídos. Há uma espécie de dignidade por falta de recursos morais, uma inteireza fundada no mundo natural. Por meio de consciência, o homem alcança o poder ou a vulnerabilidade que o destrói. Escolhe-se a força ou a destruição própria, através da inspiração passada às provas, na enigmática malha da vida, opondo as astúcias do talento a cada repto das coisas. É o génio íntimo de cada um. Génio que não dá paz, que se contenta de si, e se alimenta no seu mesmo exercício. O poder é o poder, mais nada. Um bicho, depois de fugir em pânico assenta as patas na terra e avança inteiro, com os cornos baixos, ele todo projectado na violência da cabeça. Passa ou não passa. Passa ou morre. A morte é o seu abismo. Não pede perdão. Porque a inteireza animal é cega, limpa como a luz."
Herberto Helder, "Aquele que dá a vida" (in Os passos em volta, p. 105)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

antecipação

Quero, quero, quero ver este filme, apenas porque esta cena existe.



Blazing Saddlers

re-, pré-, pró-, pós-, final.

Ah, e bastou umas canções jazzy ouvidas por um corpo partido, para que um cérebro adormecesse as sinapses podres de histórias. E as abóboras defeituosas no campo de milho - o cavalo quieto e as cabras orgulhosas, comendo. Prepara-se aqui uma viagem. Para nunca mais voltar.
Tenho fé. Porque não há tempo suficiente para arrastões.

O Minotauro e Eu

O truque afinal não é continuar a correr. É ser semeado conscientemente. Tenho dito mas não tenho feito.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Last evening's quote

"I don't have time to be Forrest Gump"

Causas perdidas porque não se consegue achá-las

Hoje falava com um amigo acerca da desilusão que ambos partilhamos em não termos nascido mais cedo e de não termos vivido nos turbulentos tempos que foram os anos 60 ou 70, por exemplo. Dizíamos que agora não sabemos qual é o nosso inimigo, desconhecemos a cara do monstro que queremos combater. Ele existe, sabemo-lo, existirão até bastantes, mas não há causas tão excitantes como antigamente.
Ora, das duas uma: ou a culpa é nossa e queixamo-nos porque simplesmente nascemos com a inércia típica da "boa" economia em que fomos dados à luz e na relativa superação de algumas lutas que nos providenciaram modos de vida mais confortáveis, ou simplesmente o que estamos a fazer é a olhar romanticamente para o passado.
De qualquer das maneiras, é verdade que me sinto um tanto ou quanto órfão em relação a causas sociais, apesar de saber que existem muitas, já para não falar nas ambientais. Mas falta que os inimigos se revelem, que sejam mais palpáveis, que arreganhem os dentes.
Porque se a coisa continua assim acabaremos todos por morrer de tédio, seja qual for a razão da nossa letargia, estejamos nós a ver a coisa de uma perspectiva errada (não fazendo as perguntas certas) ou não.
E a modorra da minha geração é produto de uma incógnita. É-o?
Não sei, talvez seja coisa do Ocidente. Conheci há duas ou três semanas um rapaz iraquiano, que esteve envolvido nos confrontos contra a reeleição de Ahmadinejad. E ele disse-me que a partir da primeira rebelião nas ruas (com consequentes mortes de protestantes) as pessoas deixaram de temer pelas suas vidas e a raiva era tanta, que só interessava deitar abaixo o tirano.
Então, pergunto: afinal, que espécie de morosidade é esta de que eu e o meu amigo falávamos?

terça-feira, 20 de outubro de 2009

God Bless America

A América é um sítio peculiar. A tão advogada "freedom" é de tal forma regrada por estas bandas, que se sente mais opressão do que outra coisa. Beber no campus nem pensar, a não ser que hajam concertos, e aí, com a devida identificação a mostrar idade superior a vinte e um anos, dão umas pulseiras (amarelas para os rapazes, rosa para as raparigas...) para comprarmos cerveja e depois a bebermos num local designado, longe do palco - o "Beer Garden". Esse estrado é curioso porque se veda com uma fita estilo policial e mesmo se pusermos um pé fora dele (mas ainda dentro da linha) vem logo um segurança dizer-nos que beber é só com a patinha no devido sítio. Ontem o concerto foi dos The Sounds e a abertura pelos surpreendentes Foxy Shazam. Duas bandas quase desconhecidas, sendo a principal bastante "calma". Mas ainda assim, polícia a rondar a sala de espectáculo dentro e fora de portas.
A realidade das partes que já visitei dos Estados Unidos e segundo o que os americanos me dizem é que o rigor e as regras são a chave do mecanismo que aqui funciona. A bebida, por exemplo, é de tal modo proíbida, que muito poucos jovens beberão pelo simples prazer de saborear um vinho ou uma cerveja. Não, beber é tabu e quase só se faz para a bebedeira. Isto é especialmente válido para os jovens pré-vinte e um anos, que bebem dentro de portas e se arrastam no fim das festas. Será que por ser apenas legal aos vinte e um anos a bebida aqui é um demónio que se apropria quando se chega à universidade e, principalmente, quando se atinge a idade legal?
Mais, andar de bicicleta fora das chamadas "bike lanes" é impensável, especialmente dentro do campus universitário, onde se pode muito facilmente (eu já assisti) apanhar uma multa que não deve ser pequena. E nós estudantes internacionais temos tantas regras a cumprir, que se por algum acaso cometemos uma pequena infracção corremos um sério risco de sermos deportados.
E as relações humanas são deveras diferentes das na Europa, ou pelo menos na realidade europeia que é a minha. A simpatia tão tipicamente americana, que eu duvido que seja falsa, torna-se desconfiança a um toque mais físico da nossa parte. Compreensível, cultural, digamos.
O fumar. Tabu brutal por estas bandas californianas. Olham-nos com algum desprezo em certos sítios, raramente haverá um cinzeiro em cafés ou bares, e só se pode fumar "20 feet away from public buildings" ou em sítios designados para o efeito. A maior parte detesta o fumo e os fumadores. Mas a maior parte dessa grande parte pede cigarros quando bebe, dispondo-se até a pagar um dólar por um "cig". E quantos pedem tabaco...a mim já lhe perdi a conta. E eu dou, porque gosto de alimentar hipocrisias.
Por outro lado, não quero soar tão desiludido com o lugar. Santa Barbara não é a melhor cidade do mundo, nem a UCSB é a universidade mais animada e cultural de todas. Aliás, não se passa muito aqui. E isso cria um deserto que me asfixia. Ainda assim, as coisas de facto funcionam e o pudor tão característico dos americanos é compensado pelo facto de podermos muito bem reclamar e ganharmos alguma coisa com isso (além de que as passadeiras num dos ginásios têm televisões individuais com canais cabo). As coisas funcionam para o povo, isso é válido para quase tudo aqui.
É difícil descrever o que é estar cá. Só vivendo o "american dream".
Mas, ó América, que "quaint" me saíste... e tão urbana ao mesmo tempo!

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

sombras de outrora hoje

A melhor maneira de talvez lidar com o passado é aceitar o facto de que nunca nos livramos totalmente dele. E assim porventura o seu peso diminua, ao nos deixarmos atingir pelas repercussões que inevitavelmente provocam novos sismos em nós. Fugir do ontem tem o preço de encarecer o presente e pode provocar crises sistemáticas no futuro - porque o equacionamos na mesma balança que o passado. E aqui chega-se a um beco com saídas amiúde escondidas. E fazer as perguntas certas é nem questionar a nossa posição. Porque é possível criar felicidade mesmo após escavarmos abismos - dançando nas trevas do buraco onde nos metemos e lembrando a luz que era a nossa antiga escuridão.

culturalmente...

Na ópera, os ciganos e os orientais cantam trechos que ao estilo operático são canções do folclore dessas origens. Ai, Carmen, como te traíram!

A Lei

Ninguém há-de abjurar o Paraíso a quem não o souber questionar por inocente falta de saber fazer perguntas. E há-de haver muitos a negarem o penoso caminho desde o chão onde caem e o buraco onde os enfiam. Eu sei disso com a força de todas as leis do amor. Tudo há-de ser eterno para esses. Ámen.

coisas destruindo outras coisas, para criar outras coisas

O que é uma vida extraordinária?

Que deserto.

Quero dar à luz.

Mas estou no deserto.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Interpretar

"The aim of all commentary on art now should be to make works of art - and, by analogy, our own experience - more, rather than less, real to us. The function of criticism should be to show how it is what it is, even that it is what it is, rather than to show what it means.

In place of a hermeneutics we need an erotics of art. "
Susan Sontag, "Against Interpretation".

terça-feira, 13 de outubro de 2009

terça-feira, 6 de outubro de 2009

A República

O dia 5 de Outubro já lá vai no meu país. E aqui onde a democracia atinge a sua faceta mais verdadeiramente alucinante e quase tirana eu sinto vontade de bem alto proclamar, Viva a República, mas o meu grito nunca chegaria os ouvidos moucos dos quasi-nobres-p'ra-ser de Portugal. É o tipo de gente que acredita no horóscopo e tem tempo e dinheiro para esperar que a monarquia seja restaurada e o tio Sebastião lhes volte para encher os cofres de ouro negro e de sangue.
E quase me esquecia que os outros não são assim tão diferentes, hoje em dia. Algum dia o foram?

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O Medo



Amália Rodrigues - "Medo"

O medo de que aqui se fala é a mão que nos prende a alma e a espreme diariamente. É esse sentimento inominável que nos tira o sono e nos faz gemer e gritar num silêncio de rasgar o peito. É o ímpeto para esmurrar o nosso tronco, a fim de permitir que o ar passe correctamente. É, muito simplesmente, o medo de existir. Não, talvez seja mais ainda o receio de viver um perpétuo sintoma do mal de ser. A desnaturalização do olhar é porventura o início de tal medo. No momento em que os nossos olhos vêem demasiado para dentro de nós, é aí que começa a ser difícil sair do espelho que é o contínuo acordar. E então teme-se todas as naturais consequências de se estar vivo e de se gostar das pessoas e das coisas. Pelo simples receio de sofrer.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Afinal de Contas

Saí do quarto para fumar um cigarro. No frio da noite havia um rapariga a andar de skate, praticando de um lado para o outro. Eu vi nela todos os ensinamentos do mundo. É o meu aniversário onde nasci. Afinal, para que nasce uma pessoa?

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Marilyn Manson - "Man That You Fear" (live 1997)

O piano fala pelo resto da música. A performance marca todas as palavras cantadas e confere-lhes maior significação e alcance. E aposto que Beckett (como me foi sugerido por alguém) poderia ter inventado uma personagem que pelo menos se assemelhasse à pose assumida pelo Manson nesta interpretação.

domingo, 27 de setembro de 2009

Uma Oração

Creio nos anjos
que andam pelo mundo
Creio na deusa
com olhos de diamante
Creio em amores lunares
com piano ao fundo,
Creio nas lendas,
nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho
que falta mais fecundo
De harmonizar
as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno
num segundo,
Creio num céu futuro
que houve dantes,

Creio nos deuses
de um astral mais puro,
Na flor humilde
que se encosta no muro
Creio na carne
que enfeitiça o além

Creio no incrível,
nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo
pelas rosas,
Creio que o amor tem asas
de ouro. Amén

Natália Correia, "Creio"

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

"God's Aways on Business"

"I don't think God knows who we are. I think He would like us, if He knew us, but I don't think He knows about us.

But He made us, Miss. No?

He did. But He made the tails of peacocks too. That must have been harder.

Oh, but, Miss, we sing and talk. Peacocks do not.

We need to. Peacocks don't. What else do we have?

Thoughts. Hands to make things.

All well and good. But that's our business. Not God's. He's doing something else in the world. We are not on His mind.

What is He doing then, if not watching over us?

Lord knows."

in Toni Morrison, A Mercy

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Arquitectando Esqueletos

O tubarão deu à costa morto, pescado acidentalmente ou apagado por causas naturais, não me recordo. Estava doente, enfermo numa cama de hotel, com o cérebro queimado de febre e a cara destruída pela temperatura do corpo.

aos confrontos
crispados de rebentamentos

em mim

férias mais cedo, de volver ao país porque havia assuntos prementes a resolver. E eu pensava
Metemo-nos à pressa num táxi em direcção ao aeroporto. As pessoas acharam que tínhamos prioridade
e a vida, que estavam
eram arrasadas por vergastadas. Eu era jesus desnudo, com os braços livres para me tocar.
de culpa. E no funeral eu só soube rir-me em casa. Não vi onde ias, para onde foste, não te vi a ser devorado pela terra. Mas ouvi os gritos de todos, ouvi-os ao masturbar-me depois
e que uma das tuas irmãs reprovou. Éramos nós desorientados na tua ausência.

pretas, dizia a minha mãe. E aí eu soube que estavas morto. No fundo de mim, eu soube que me morreras. O teu tio Tónio morreu. O meu tio Tónio morreu. Chorei.
nunca o teres feito. A tua face sisuda ao ver-nos, sabendo nós que não permitirias que as lágrimas
e tal foram um crescendo. O fim de tarde lento, de calor, o meu gato desnorteado, ao chegarmos
um dos teus sobrinhos e chorei. A minha camisola preta de mangas compridas que
sofria. Não porque o meu sofrimento não fosse verdadeiro, mas porque queria que percebessem
A morte tocou-nos no calor, dilacerados por um sol que nunca mais nos aqueceu. Dizia-se, já não há alegria.
Eu que sempre evitava visitar esse espaço. Era um novo ciclo de paixões que me aconteciam
o tumulto da incerteza e o início da imbecilidade da inveja dos outros corpos
se começava a delir na minha memória. E disse a minha mãe, que, a jeito de me
racionalidade.

coisas e uma profunda amargura ao prever o sofrimento das fotografias progressivamente
mais baças.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Efeito Borboleta

Não sabia que o filme Tropa de Elite era para chorar. Mas chorei. No conforto burguês da minha cama e do meu portáltil chorei. Por cada morte indiferente. Por cada realidade dura nos morros. E senti-me um idiota hipócrita. Porque sou mais um puto burguês que apenas pode (consegue?) ter consciência social e nada mais.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O Acidente

Não se sentia o mesmo após o acidente. Nem mesmo com os meses largos que haviam corrido ou com a fúria de um torpedo ou com a placidez de uma ovelha. Não era a mesma pessoa. E nesse dia o mundo parecia prestes a fechar-se sobre o seu peito, como acontecia de quando em vez. Sentia saudades de quem tinha sido antes da queda no percurso, desse inocente Adão que passeava nu nos cafés e lia livros ao fim da tarde. Voltaste a ser quem eras, diziam-lhe as árvores, alheadas da verdadeira tormenta dentro de si. O certo é que as melhorias eram significativas, notórias, secundárias até, dado o nível de importância que os seus lhes davam e até mesmo ele, que gradualmente adquirira, enfim, capacidade de relativizar. Mas havia aqueles ataques súbitos, despoletados por um qualquer momento ou palavra traumáticos, havia os lugares, havia o fosso e o mato, o tempo e os fármacos. E nesse dia, à tarde, percorreu as ruas e dirigiu na cidade com a inquietude anatematizadora que lhe deixava a alma exangue. Os dias que lhe restavam antes que. Todas essas horas. E o tempo da vida deixava-se sempre sentir como um momento, uma fugaz sensação que permite résteas e arestas que se limam mais ou menos bem. Limpar os cantos à casa. Não, não era o mesmo desde o acidente. Porque não se lembrava da vida antes do acidente. Porque era tudo fragmentos de tinha sido, foi, seria, terá sido. E aí as portas do mundo principiarem em fechar-se e ele prestes a ser esmagado pelo existir, sofrido por demais pelo viver, perdidas que estavam tantas contas que lhe eram queridas. Mas o filme era por ele já sobejamente conhecido, mesmo que lhe custasse que decorridos que estavam tantos meses ainda houvesse manifestações sísmicas repentinas, sem aviso prévio, com ondulações e repercussões que intermitentemente espreitavam. E sentou-se no café, absorvendo toda a malícia e nuvem negra de ser, e pediu o lanche. Eugénia ligou-lhe, disse-lhe que gostava muito de continuar a trabalhar com ele, que sim. Impossível, Eugénia. E então Eugénia desejou-lhe as maiores felicidades e deixou as portas abertas para mais tarde, se mais tarde existisse, e ele sentiu verdade na voz de Eugénia. Uma brecha de luz. Eugénia. Um raio insuspeito. Veio Daniel, anjo de voz grave, e sentou-se com ele. A luz, tremendo, expandia-se ainda espandongada pelas trevas. O jantar. O cisma. Ganhava terreno a noite. Persistência da memória. O acidente. Continuava lutando, o rapaz, contra o que estava dentro de si. E porque o tempo. E porque a morte. E porque a falta de sentido. Continuou o serão e a voz do anjo, à sua frente, dizia-lhe um espelho. E veio Eva à chuva, lavando-se em lágrimas na despedida. O acidente. Mas a razão. Mas as pessoas. Mas o amor.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A Movimentação do Olhar

Na criação, por mais que tentemos, nunca saímos realmente de dentro de nós mesmos. A experiência pessoal é o epicentro do terramoto que é o mundo - a força centrípeta que exercemos ao conhecer é projectada centrifugamente, a fim de provocar mais sismos. E assim sucessivamente e circularmente.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

A Intenção Poética

'O Último Poema' - Manuel Bandeira

Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

'Last Poem' - Fernando Pessoa

É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.

Curiosas são as diferenças entre os dois poemas. A ter em consideração a distância anímica com que Bandeira escreveu o seu texto e a declamação no leito de morte de Pessoa. E, no entanto, a simplicidade que transborda nos dois poemas é por demais evidente. Ainda assim, enquanto que Bandeira procura aquilo que poderíamos chamar a alma das coisas, Pessoa segue tratando o sol como sol e mais nada. Diferentes intenções ou apenas duas vias para chegar ao mesmo último poema?

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Da Escola Cínica ao Cinismo Puro

Diógenes de Sínope deambulava pelas ruas rejeitando todas as convenções sociais possíveis. Com uma lamparina acesa durante o dia, o fundador da filosofia cínica professava procurar um verdadeiro ser humano com essa luz.
Por que razão nos tornámos demasiado cínicos para seguir a escola de Diógenes e usar a mesma lamparina? Estaremos arrogantes ao ponto de não precisarmos dela?
Parece-me é que roubámos a sombra a Diógenes, tal como Alexandre da Macedónia.

domingo, 2 de agosto de 2009

a tarefa do escritor

Pretende-se com a escrita confirmar apenas a eterna impossibilidade da palavra. O que me parece é que a escrita não só mata palavras (ao falsamente lhes dar vida) como lhes rouba aquilo que elas dizem dentro das pessoas. Tentar roubar o menos possível é a tarefa de um bom escritor.

sábado, 1 de agosto de 2009

Da Estética como Metafísica, da Filosofia como História (?)

(...)
The soul goes out to seek adventure; it lives through adventures, but it does not know the real torment of seeking and the real danger of finding; such a soul never stakes itself; it does not yet know that it can lose itself, it never thinks of having to look for itself. Such an age is the age of the epic.
It is not absence of suffering, not security of being, which in such an age encloses men and deeds in contours that are both joyful and severe (for what is meaningless and tragic in the world has not grown larger since the beginning of time; it is only that the songs of comfort ring out more loudly or are more muffled): it is the adequacy of the deeds to the soul's inner demand for greatness, for unfolding, for wholeness. When the soul does not yet know any abyss within itself which may attempt it to fall or encourage it to discover pathless heights, when the divinity that rules the world and distributes the unkown and unjust gifts of destiny is not yet understood by man, but is familiar and close to him as a father is to his small child, then every action is only a well-fitting garment for the world. Being and destiny, adventure and accomplishment, life and essence are then identical concepts. For the question which engenders the formal answers of the epic is: how can life become essence? And if no one has ever equalled Homer, nor even approached him - for, strictly speaking, his works alone are epics - it is because he found the answer before the progress of the human mind through history had allowed the question to be asked.
(...)
Our world has become infinitely large and each of its corners is richer in gifts and dangers than the world of the Greeks, but such wealth cancels out the positive meaning - the totality - upon which their life was based. For totality as the formative prime reality of every individual phenomenon implies that something closed within itself can be completed; completed because everything occurs within it, nothing is excluded from it and nothing points at a higher reality outside it; completed because everything within it ripens to its own perfection and, by attaining itself, submits to limitation. Totality of being is possible only where everything is already homogeneous before it has been contained by forms; where forms are not a constraint but only the becoming conscious, the coming to the surface of everything that had been lying dormant as a vague longing in the innermost depths of that which had to be given form; where knowledge is virtue and virtue is happiness, where beauty is the meaning of the world made visible.
Georg Lukács
The Theory of the Novel

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Nas Fissuras

Não será a liminalidade uma comprovação da necessidade humana de tudo categorizar e organizar? Afinal, porquê definir o que está "in-between", seja isso transitório ou permanente?

segunda-feira, 13 de julho de 2009

sempre

E apesar de toda a minha racionalidade ainda me questiono: estarei eu a fazer as perguntas certas?
O que me faz permanecer acordado à noite, deliberadamente, esperando que o nevoeiro desapareça e que venha o manto azul cobrir-me? Espera o meu espírito uma "mensagem nova" todos os dias e eu olho constantemente o visor do telemóvel. Mas ele devolve-me o meu próprio rosto, carregado, cometendo os mesmos crimes de outrora. Não foi para isto que me construí, direi. Mas se não foi para isto, foi para quê? Por que razão permaneço eu acordado, se a minha árvore é perfeitamente capaz de si mesma? Porque necessito eu que desvaneça a neblina?
Porque espero eu por um dos outros lados do mar, se já um me foi prometido? Porque vagueio eu aqui, esperando?
E olho para o céu. Venerando a minha estupidez. Sorrindo.

sábado, 4 de julho de 2009

Um dos Tempos

Um dia ainda hei-de recordar-me do meu futuro e sabê-lo e senti-lo tão belo quanto ele será.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

as reticências

Gostava até de...

domingo, 28 de junho de 2009

Baco

Engano o desejo de viver. Quatro cavalos, diz quem sabe. Mas o coche não se mexe. Fico parado, tu não me vês (quero eu que me vejas?). Quem me vai guiar? Ninguém.

Que toda a gente venha ver o lusco-fusco.

Eu morrerei mais à frente.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

do Sul

"chiamu la vita e sempri morti marrispunni"

in "Vitti Na Crozza"

terça-feira, 23 de junho de 2009

A Solução Final

"Dai-me os frutos do vosso vómito. E as tesouras para podar o meu eco. A escada para subir ao elefante do escárnio. Rio-me face ao sol. E nem sei se beber vinho me faz inchar as mãos. O que está do outro lado é sempre melhor, mais feliz. Dai-mo, esse lado trespassado pela alergia de ser morrente. Para que eu ultrapasse a vida no desejo de me ter."
Sem género nem nome, assim sobrevoaremos a cidade e assistiremos à sua autodestruição. Sentiremos o chão desabar sob os nossos pés e o calor insuportável do fim do mundo. Desapareceremos. Mas na nossa concretização final, no suprimir da Terra, daremos a vida pelo diário - para que fique originalmente no centro do novo planeta que surgirá. Sim, destruamos o mundo. Sem nome nem género. A cidade em chamas, nós daremos as mãos ao ardermos. E a história há-de recomeçar já escrita.

terça-feira, 16 de junho de 2009

O Impacto

Tudo volta para mim agora, diz Adão, venerando, Tudo o que fiz em ricochete a trespassar-me. E eu que fui construindo um monstro sem amar, agora revejo-me na decepção que os anjos mandam para mim. Assim diz Adão, olhando o espelho. O seu amor próprio alimentado pelo desprezo pelos outros. Quão errado estive. Na minha voz, de narrador e de personagem, agora abafada por uma outra, imensa, mais forte, que me deu silêncio neste espelho. E ele que queria voltar a amar, Fui atingido pela figura que projectei, no esgar de troça que a figura lhe devolve, Preso na indiferença do corpo, sabe agora que tem de voltar a amar, Suspenso na memória nocturna, e não sabe quando o fazer, Eu que não choro não consigo chorar, contempla-se sem esperança nem tristeza, Quando começarei novamente a fraquejar, fazendo perguntas sem resposta.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Lógica

Quem diz que os ateus não crêem é porque não sabe que eles acreditam que não há Deus.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

da sociedade de classes

Como não sermos hipócritas se é inevitável que ao andar esmaguemos alguns insectos?

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Questionamento Religioso

O Bento XVI reviu aquilo que acontecia às crianças mortas antes do baptismo. Agora, segundo ele, essas almas passariam directamente para o Céu e não ficariam, como até aí, no limbo. A minha pergunta é: o que aconteceu às outras todas que foram para o limbo? Querem ver que a Igreja aproveitou essas alminhas para lhes dar corpos e usá-los depois para actos de pedofilia que tão bem se têm vindo a descobrir serem profusos no seu seio?

terça-feira, 26 de maio de 2009

O rei desconstrói, sorrindo.

Tenho medo de viver com medo de viver. Quero esgotamentos nervosos, quero saber que já fiz tanto, que ainda me falta tanto para nunca chegar a fazer tudo. Desdobrar-me todo em todos múltiplos de todos. Tão pouco tempo e, no entanto, tantas coisas para fazer, que a ironia é tão grande por não poder dispender todo o tempo a gastá-lo com essas mesmas coisas. E dormir tão profundamente é fazer muitas coisas, sonhos molhados, pesadelos febris, ideias, arte para canhão. Disparar poemas contra tudo o que mexe e foder, foder, foder. Amar tudo no ódio de gostar. E amar. Perpetuamente amar no espaço liminal de um ritual de passagem que termina em nenhuma revelação. Sem para sempre é complicado de conceber - e a língua anda à frente das ideias inconcebíveis. Para sempre sabendo que a eternidade não é imortal. Anda este rei à procura do trono, sentado nele.

sábado, 23 de maio de 2009

A Redução do Riso 2

A Caixa Número Três, A Quinta Bobina

A Krapp

A minha memória gravada, (solidão de quem recorda
sem se lembrar), entoa a minha voz apagada,
enquanto eu, preso a um fio rompido, bebo à minha loucura
de ser estrume. E escorrego nele, de face calada,
rememorando os obtusos anos
da minha procura.
Suspendo o fio, adianto, regresso e
grito nos intervalos da lembrança
e contra-digo o discurso que digo;
os aniversários enfadam-me, o amor cansa,
eu fui porcaria jovem e a minha aurora
um castigo.
Nessa caixa número três, na quinta bobina,
rodam os anos magoados,
e eu bebo sozinho e amaldiçoo toda a minha história;
para mais tarde, vencido, de olhos tão fechados,
que se abrirão vazios, escutar abraçado o silêncio
da minha memória.
Picasso, "Harlequin Sitting on a Red Couch", 1905

terça-feira, 19 de maio de 2009

"L´Envoi"

Pode parecer a alguns de vós que, nas presentes e altamente irritantes condições do mundo, o estudo da literatura seja um desperdício de energia, sobretudo o estudo da estrutura e do estilo. A minha opinião é que para certo tipo de temperamento - e cada um tem um temperamento diferente -, o estudo do temperamento pode parecer sempre, em qualquer circunstância, um desperdício de energia. Mas fora isso, creio que em todos os espíritos, quer estejam inclinados para o artístico ou para o prático, há sempre uma célula receptiva às coisas que transcendem as espantosas preocupações da vida quotidiana.
Os romances que estudámos não vos ensinarão nada que possais aplicar aos problemas óbvios da vida. Não ajudarão no escritório, nem no exército, nem na cozinha, nem no jardim-escola. De facto, os conhecimentos que tentei partilhar convosco são puro luxo. Não vos ajudarão a compreender a economia social da França nem os segredos do coração de uma mulher ou de um homem. Mas talvez vos ajudem, se acompanhastes os meus ensinamentos, a sentir a pura satisfação que uma obra de arte inspirada e precisa transmite; e esta sensação de satisfação dará por sua vez lugar a um sentimento de verdadeiro consolo mental, o consolo que se sente quando se toma consciência, apesar de todos os seus equívocos e enganos, de que a textura interior da vida é também matéria de inspiração e precisão.
(...)
in Nabokov, Vladimir, Aulas de Literatura, (Trad. Salvato Telles de Menezes), Lisboa, Relógio d' Água, 2004, p. 432

domingo, 3 de maio de 2009

Lazing on a Sunday afternoon

O arlequim foi anatematizado e o saltimbanco está exangue.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

O Tombo

I. Uma queda principia

Caía a grande velocidade, sem nunca conseguir ver, naquele instante de tempo, alguma das pedras que saltavam e rodavam com o impacto do seu corpo no terreno poeirento e duro, caía e, por entre os trambolhões repetidos, perguntava-se o porquê daquele tombo, daquela queda vertiginosa, não sabia se o haviam empurrado nem sequer de onde tinha caído, se lhe perguntassem de onde tinha vindo, qual era a sua história, ele responderia que não tinha noção de algum dia ter vivido antes destes trambolhões. O seu corpo era enrolado por forças que se sabe existirem mas que raramente se experienciam daquela forma, velocidade aliada a gravidade e uma tremenda de uma queda mal caída, de beiço no chão, sem aviso prévio nem um instante para se poder preparar, nada, tombou logo ali, naquele momento em que, procurava lembrar-se enquanto rebolava pela terra fora, tinha ou não sido empurrado. E se tinha, de facto, sido empurrado, quem o havia feito? Porquê? Buscava na sua memória qualquer rolo perdido onde tal pessoa pudesse figurar, mas não se conseguia lembrar do tempo anterior ao tombo. Nasci aqui, pensou, nesta queda, deste tombo, porventura encontrando, se tal era possível, algum sentido para a existência concretizada através de um trambolhão. E, no entretanto, continuava a rebolar, parecia interminável o movimento, as moções circulares repetidas desmedidamente. O seu corpo impactado contra o chão era festim para as pedras e a sua cabeça, de cada vez que batia no chão, doía-lhe por todas as anteriores. Era um sofrimento que não acabava. E ele sem lembrar-se de nada. Por sorte, chamemos-lhe assim, um pedregulho mais consistente no caminho chocou com a sua cabeça, ou o contrário, e houve uma espécie de flashback, um instante demorado de imagens, de passado, quem saberá, de pessoas, de espaços, de vida.



quinta-feira, 16 de abril de 2009

Do Amor e da Morte

(...) Ainda junto da janela, com a coberta enrodilhada aos pés, o jovem fitava-a. Estava nu e fitava-a.
- Esperava por ti, se quisesses.
Baixou os olhos. Sorriu triste:
- Nem vais ao menos à camioneta, querido?
Ele fez-lhe que sim com a cabeça.
Mas não foi. Ficou especado atrás do estore, seguindo-a com a vista a atravessar a praça, lá em baixo. Depois vestiu-se à pressa e pagou o quarto. Não quis o troco, que diabo, atirou-se pelas escadas estreitas a toda a pressa, e só parou cá fora, na esplanada.
- Uma aguardente velha. Copo grande.
O rádio transmitia uma cançoneta e fazia ruídos. Uma cançoneta francesa, parece que era.
- Está bem assim?, perguntou o criado, a apontar o cálice vazio.
- Está bem, qualquer coisa. A que horas é a camioneta?
- Agora parece-me que só lá prás dez. Dez, dez e tal.
O criado serviu a aguardente. Ia a afastar-se quando o rapaz o segurou pelo braço, esvaziando o cálice duma golada.
- Dez horas, disse?
- Sim. Não sei bem a hora certa a que ela parte mas lá dentro já me dizem.
- Espere. Deixe, não vale a pena. Obrigado.
- Mas não me custa nada, senhor. Há um horário lá dentro, no balcão. Outro cálice?
- Deixe lá, não vale a pena perguntar. O que há-de ser agora? Madeira. Tem vinho da Madeira?
- Não sei, senhor. Mas não poderá ser Porto?
- Está bem, seja o que for. Traga então Porto.
- Cálice grande, não é assim?
- Sim, cálice grande.
Acendeu um cigarro e olhou à volta, as cadeiras, as mesas de ferro, o hotel à esquina do passeio, e a janela do quarto do primeiro andar. Os olhos ficaram-se-lhe ali, naquele estore verde ainda corrido, nas paredes peladas à volta das vidraças.
E quando o criado voltou, disse-lhe para não deitar, tapando o cálice com a mão.
- É Reserva. Muito forte, faça favor de ver.
O homem continuava a apontar o rótulo da garrafa mas ele nem sequer o olhou.
- O senhor experimente que vai ver. Reserva, com mais de dez anos de casa e muito mais forte que o Madeira. Faz favor...
- Não. Leve isso. Traga-me antes um café quente.
Parecia recitar, falando sem despegar os olhos do outro lado da praça. Olhava a janela e tinha o cigarro esquecido nos dedos.
- Um café forte, continuou. Preciso de ter a memória viva...
Virou-se, mas o criado já ali não estava.

José Cardoso Pires, "Week-End" in Histórias de Amor


(...)
- O médico foi claro. Havia um relógio na secretária e olhei as horas. Eram cinco precisas. Estava calmo e reparei. Tenho dois ou três meses no máximo. O tempo contado dia-a-dia. É extraordinário como tudo agora me parece diferente. Mais belo talvez. Creio que vou viver agora mais intensamente. Dia-a-dia. E três meses no máximo.
- Espera! Três meses como? - disse a rapariga, subitamente iluminada.
Pôs-lhe a mão no braço e olhava-a fixamente. Ele olhou-a também e ambos ficaram a tentar entender-se em silêncio. Depois ela tirou a mão do braço do rapaz e acendeu novo cigarro. O sol escorria do alto e inundava-lhe agora a mesa toda. O rapaz tomou o copo e bebeu um gole devagar.
- Diz outra vez - repetiu a rapariga - Deixa-me entender. Diz outra vez, para entender tudo muito bem.
- Tu vais dizer que tudo isto é estúpido e eu sei bem que é. Mas se a gente pensar bem, a estupidez é só nossa.
- Sim. Mas explica tudo muito bem. Desde o princípio. Devagarinho.
- A estupidez é só nossa, porque a vida não é verdade. Mas é a única coisa em que se acredita - disse o rapaz.
- Sim - repetiu a rapariga - Mas era bom que explicasses desde o princípio. Devagarinho. Para eu não acreditar também. Está um dia cheio de sol.
- Mas a explicação é simples - disse ele, balouçando o líquido no fundo do copo. Eu vou explicar tudo. Eu vou.
Estava uma tarde cheia de sol. As águas brilhavam até ao limite do horizonte, um barco à vela ia passando pela estrada de lume. O ar estava quente. E a brisa do mar quase não chegava ali.

Vergílio Ferreira, "Uma Esplanada sobre o Mar" in Contos

terça-feira, 7 de abril de 2009

Pelo fogo adentro

Deus chora porque não sabe morrer.

sábado, 21 de março de 2009

Depois do Fim o que fica?

A Matriz Poética

A Herberto Helder

Este é o tempo da carne:
o tempo de um esplendor de esferas
circulando em volta de um sol sem núcleo.
E a sua matéria faz-se num fogo que arde ao ver-se
num vazio sem oxigénio.

E desce à terra, colhendo frutos que são pedras.

Cá em baixo, abate-se sobre os tectos
uma sombra branca de insónia,
que reflecte os raios desse sol,
rasgando a substância ao invés de a queimar.
Tal é a força do tempo da carne,

Que dilacera os corpos com fausto.

E, num momento, o mundo cessa, suspende-se,
preso sem horas nem espaço.
No fim desse fim, resta apenas um
poema que luta contra o tempo e a carne,
feito de palavras que dormem o silêncio,

Tomando a destruição do mundo em seu regaço.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Do Ódio

Uma das coisas que me consola na história do assassinato do Matthew Shepard é saber que tanto Aaron McKinney como Russel Henderson estarão provavelmente a levar no cu na prisão.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Why I am so Alive

To Andy & Sally, my vegetarian Guardian Angels who go to the movies and talk to people:



quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O Medo encerrado no Corpo que falha

"Oh, but you are alone. Who knows what you have spoken to the darkness, alone, in the bitter watches of the night, when all your life seems to shrink, the walls of your bower closing in about you, a hutch to trammel some wild thing in?" - The Lord of the Rings, The Two Towers
"I dreamed I saw a great wave, climbing over green lands and above the hills. I stood upon the brink. It was uppterly dark in the abyss before my feet. A light shone behind me but I could not turn. I could only stand there, waiting." - The Lord of the Rings, The Return of the King
É nesta noite escura e sufocante que concateno estas duas citações e as aproprio para mim mesmo. Amanhã. Será uma longa espera até o amanhã. E a partir daí pode ser só um abismo. Agora percebo, Fernando Ribeiro, agora sei como não deliberadamente, mas com a culpa toda escavar um abismo.
E odeio que o Pós-Modernismo esteja tão certo em relação à condição humana: só podemos depender e confiar no nosso corpo. Mas o nosso corpo eventualmente falha. Apodrece. Morre. Esta premissa incontornável é o veículo através do qual me tentei guiar, mas penso que me esqueci de fazer as revisões e não conduzir depressa sobre lacadas. Venha um mecânico e analise. Estou para tudo.
"God knows how I adore life" Beth Gibbons, "Mysteries"

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

THE BROOKLYN FAIRIES

O romance de Paul Auster, The Brooklyn Follies, trata, entre várias outras coisas, de um personagem chamado Nathan que, de traumatizado que estava, decide escrever um livro onde regista todos os seus erros passados, todas as loucuras que cometeu, todos os desvairos e pecados. Esse livro dentro do livro chama-se The Book of Human Folly e serve como um modo de expurgar a porcaria que Nathan por diversas vezes fez.

Ontem uma senhora erroneamente chamou o romance de The Brooklyn Fairies. É curioso imaginar qual seria o livro que seria escrito dentro de este outro romance. Um conto de fadas passado em Brooklyn no início do séc. XXI? Um romance queer que tivesse como pano de fundo a queda das Torres Gémeas, simbolizando, consequentemente, a queda da homofobia de uma América que conserva New York como bastião da sanidade nacional?

Não sei, ninguém sabe, nem a senhoria saberá, porventura. A verdade é que a troca da última palavra do título da obra de Paul Auser adquire uma nova dimensão, ainda não explorada pelos GRANDES académicos que estão a participar na conferência da APEAA deste ano de 2009. Talvez um tema a tratar no próximo ano: "Self, Memory, and Expression in Fairy Literature". Sounds promising - a lot more promising than this year's edition.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A apropriação do Outro

Será que alguma vez um tubarão branco comeu um tigre?

A redução do riso

"It is all very well to eat, drink, and be merry, but one cannot always put off dying until tomorrow." - Northrop Frye, The Anatomy of Criticism
Quando acabarás, Pós-Modernidade?