terça-feira, 29 de dezembro de 2009
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
o lobo e o cão - predadores os dois?
sábado, 19 de dezembro de 2009
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
do amor
Amy Winehouse - "Love is a Losing Game."
Sim, é foleiro pôr um vídeo da Amy Winehouse num blogue (é?). Mas a verdade é que esta canção toca-me tanto, que fico a pensar se serei a voz que ela canta ou, inversamente, a voz que existe do outro lado e que, concludentemente, torna estas coisas do 'amor' (qual dos quatro amores da Grécia antiga será aquele a que me refiro/se refere a música?) numa espécie de parede irrevogável, um jogo perdido, uma completa e, por vezes, desesperante falta/perda de fé em tudo o que isso um dia significou para mim. Já perdi três mãos à conta do 'amor'. E era tudo muito bonito até me aperceber que tudo, exactamente tudo, apodrece e morre. Alguém me pode explicar a razão pela qual continuar a procurar esse sentimento inocente se isso nunca basta e nunca satisfaz e, reforço, acaba, termina, foge, desfaz-se, perde-se, afoga-se, arde até às cinzas de tanto arder, queima por ser chama e sucumbir às leis que fazem a cera derreter? E porque digo eu estas coisas com vinte e três anos? Porquê? Por que razão tenho eu uma espécie de muro intransponível, porque sinto eu modorra e indolência ao pensar no 'amor', e uma profunda alegria/apatia (podem estas duas palavras ir juntas com uma barra entre elas?) em simplesmente recusar aquilo a que chamam 'amar'?
apropriação a meu bel-prazer
Sinais de fogo, Jorge de Sena
Some kind of explanation is worth the shot
of new and different ways to murder your heart
I'm just a painting that's still wet,
if you touch me I'll be smeared,
you'll be stained,
stained for the rest of your life
(...)
There's a crack in my soul
You thought it was a smile
Whatever doesn't kill you...is gonna leave a scar
Whatever doesn't kill you...is gonna leave a scar
leave a scar
leave a scar
Whatever doesn't kill you
is gonna leave a scar.
I'm more like a silver bullet,
than I'm like a gun, not easy to hold.
I'm moving fast and if I stay inside your heart
I'm certain that this will be
the end of your life.
whatever doesn't kill you...is gonna leave a scar
whatever doesn't kill you...is gonna leave a scar
leave a scar
leave a scar
whatever doesn't kill you
is gonna leave a scar.
(...)"
Marilyn Manson - "Leave a Scar"
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Descobrindo
Ok, esta série é simplesmente brilhante. Penso que já saiu há quatro anos atrás mas eu só a descobri muito recentemente. Este é apenas um excerto de um dos episódios. Vale mesmo a pena ver. Através do website www.ovguide.com consegue-se ver quase todos os episódios da primeira e segunda séries.
Enjoy!
arquitectando esqueletos pt2
monólogo
domingo, 6 de dezembro de 2009
coisas
Nem sempre tenho de me rir.
Nem sempre tenho de gostar de viajar.
Nem sempre tenho de me deitar a horas.
Nem sempre tenho de não ter medo.
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
San Francisco
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
A palavra
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
ler
Percy Lubbock, The Craft of Fiction
Poequasia
O homem:
Eu hei pacificado o mundo à minha volta,
Todos os olhos em meu redor,
Todas as pétalas em meu regaço,
Dêem-me agora o sono dos justos.
O homem fuma cigarros intermináveis,
Ouvindo as trompetas dos pequenos passos,
pequenos,
E permanece firme na cadeira, os olhos cansados,
Ouvindo a modorra do futuro,
Passado dos passados, sentindo
A bateria marcar ritmos até ao dia da sua morte.
sábado, 21 de novembro de 2009
estranhos impulsos
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
Os pássaros negros de asa laranja
terça-feira, 17 de novembro de 2009
Correcção
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
fairy king
sábado, 14 de novembro de 2009
Caixa de Pandora
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Publicidade
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
Salvação (?)
Peuvent-ils encore voler?
Les enfants que l'on outrage
Peuvent-ils encore aimer?"
Esmeralda, "Les oiseaux qu'on mette en cage." Notre Dame de Paris
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
quarta-feira, 4 de novembro de 2009
lost poetry
hungry we are forever for something else.
And it may be that our ship never really finds any land,
it may be that the tempests never fade;
And though we are traveling lost in time
our clocks tick with each of our heartbeats.
(lost text)
Sailing the seven seas and more,
are we not always wishing to be someone else?
And, alas, our ship finds the isles
baffed up by golden winds and drowned in divine liquor!
It could be that if we stopped (lost text)
(lost text)
the tempests faded and yet our
hearts grieve the darkness that was lost.
(lost text)
The clocks have stopped...
anonymous English poet from the 17th C
terça-feira, 3 de novembro de 2009
quatro pios na noite
1. Por mais que estejamos, em última instância, sozinhos, nunca estamos realmente sozinhos. É uma estranha dicotomia que opera na vida de uma pessoa. Nunca seríamos eternos se não morrêssemos, do mesmo modo que nunca viveríamos, criada que foi a "sociedade", se não houvesse mais pessoas.
2. Não é coisa nova que eu diga que as cicatrizes físicas que carregamos são quase a mesma coisa que aquelas que nos afectam o que não é biológico. E também não é novidade se eu afirmar que a grande diferença entre umas e outras é que a maior parte das cicatrizes no corpo são mais fáceis de esquecer (aqui perdoar-me-ão as pessoas que vivem com marcas na face, por exemplo) do que as da chamada "alma". Muitos teóricos que se debruçam sobre o mecanismo da memória já o afirmaram (Marc Augé, para citar apenas um) e eu reforço: se conseguíssemos esquecer certos momentos e acontecimentos que nos perturbaram maliciosamente seria muito mais fácil lidar com tudo o que está inerente à existência. Mas também perderíamos muito do bom que adquirimos. Resta saber o que vale mais: o sofrimento de viver com cicatrizes que nunca realmente cicatrizam ou a amnésia que pode muito bem matar depressões.
3. Vai um grande espaço entre distância física e distância mental. Hoje em dia em vinte horas estamos em qualquer parte do mundo. O que são vinte horas? Quase nada, o tempo de ler dois, três livros, ver dois ou três filmes e dormir, contando que estejamos a viajar. E se carregarmos o nosso barulho de fundo connosco o nosso peso aumenta tantas vezes quantas nos imaginarmos de volta ao ninho. A questão, claro está, é o receio de que o ninho já não seja o mesmo ninho e que o território longínquo não nos providencie um outro. Em parte, estar num sítio novo é complicado porque o local é alheio a nós (ou nós somos-lhe alheios), mas a grande fatia daquilo que este tipo de desassossego é feito é a liminalidade. Ou talvez isto tudo seja parvoíce minha.
4. E fica um desenho que fiz e colori. Não tenho jeito absolutamente nenhum para estas coisas. O curioso é que pintei o "ser" que desenhei com cores que lembram a bandeira portuguesa e apenas no fim notei isso. Vá-se lá saber as partidas que nós pregamos a nós mesmos. O título é "The Howl".
segunda-feira, 2 de novembro de 2009
da descontinuidade que é a ficção
Charles E. May, The New Short Story Theories
sábado, 31 de outubro de 2009
mensagens subliminais
Sweet Dreams, Kirsten lepore
Não percebo bem a relação do queque com o vegetal. É...estranha...
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
o canto do mar
sábado, 24 de outubro de 2009
a vida dos animais
Herberto Helder, "Aquele que dá a vida" (in Os passos em volta, p. 105)
quinta-feira, 22 de outubro de 2009
re-, pré-, pró-, pós-, final.
O Minotauro e Eu
quarta-feira, 21 de outubro de 2009
Causas perdidas porque não se consegue achá-las
terça-feira, 20 de outubro de 2009
God Bless America
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
sombras de outrora hoje
culturalmente...
A Lei
coisas destruindo outras coisas, para criar outras coisas
Que deserto.
Quero dar à luz.
Mas estou no deserto.
sexta-feira, 16 de outubro de 2009
Interpretar
In place of a hermeneutics we need an erotics of art. "
Susan Sontag, "Against Interpretation".
terça-feira, 13 de outubro de 2009
terça-feira, 6 de outubro de 2009
A República
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
O Medo
Amália Rodrigues - "Medo"
O medo de que aqui se fala é a mão que nos prende a alma e a espreme diariamente. É esse sentimento inominável que nos tira o sono e nos faz gemer e gritar num silêncio de rasgar o peito. É o ímpeto para esmurrar o nosso tronco, a fim de permitir que o ar passe correctamente. É, muito simplesmente, o medo de existir. Não, talvez seja mais ainda o receio de viver um perpétuo sintoma do mal de ser. A desnaturalização do olhar é porventura o início de tal medo. No momento em que os nossos olhos vêem demasiado para dentro de nós, é aí que começa a ser difícil sair do espelho que é o contínuo acordar. E então teme-se todas as naturais consequências de se estar vivo e de se gostar das pessoas e das coisas. Pelo simples receio de sofrer.
quinta-feira, 1 de outubro de 2009
Afinal de Contas
terça-feira, 29 de setembro de 2009
Marilyn Manson - "Man That You Fear" (live 1997)
O piano fala pelo resto da música. A performance marca todas as palavras cantadas e confere-lhes maior significação e alcance. E aposto que Beckett (como me foi sugerido por alguém) poderia ter inventado uma personagem que pelo menos se assemelhasse à pose assumida pelo Manson nesta interpretação.
domingo, 27 de setembro de 2009
Uma Oração
que andam pelo mundo
Creio na deusa
com olhos de diamante
Creio em amores lunares
com piano ao fundo,
Creio nas lendas,
nas fadas, nos atlantes,
Creio num engenho
que falta mais fecundo
De harmonizar
as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno
num segundo,
Creio num céu futuro
que houve dantes,
Creio nos deuses
de um astral mais puro,
Na flor humilde
que se encosta no muro
Creio na carne
que enfeitiça o além
Creio no incrível,
nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo
pelas rosas,
Creio que o amor tem asas
de ouro. Amén
Natália Correia, "Creio"
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
"God's Aways on Business"
But He made us, Miss. No?
He did. But He made the tails of peacocks too. That must have been harder.
Oh, but, Miss, we sing and talk. Peacocks do not.
We need to. Peacocks don't. What else do we have?
Thoughts. Hands to make things.
All well and good. But that's our business. Not God's. He's doing something else in the world. We are not on His mind.
What is He doing then, if not watching over us?
Lord knows."
in Toni Morrison, A Mercy
sexta-feira, 18 de setembro de 2009
Arquitectando Esqueletos
aos confrontos
crispados de rebentamentos
em mim
férias mais cedo, de volver ao país porque havia assuntos prementes a resolver. E eu pensava
eram arrasadas por vergastadas. Eu era jesus desnudo, com os braços livres para me tocar.
e que uma das tuas irmãs reprovou. Éramos nós desorientados na tua ausência.
pretas, dizia a minha mãe. E aí eu soube que estavas morto. No fundo de mim, eu soube que me morreras. O teu tio Tónio morreu. O meu tio Tónio morreu. Chorei.
nunca o teres feito. A tua face sisuda ao ver-nos, sabendo nós que não permitirias que as lágrimas
sofria. Não porque o meu sofrimento não fosse verdadeiro, mas porque queria que percebessem
A morte tocou-nos no calor, dilacerados por um sol que nunca mais nos aqueceu. Dizia-se, já não há alegria.
o tumulto da incerteza e o início da imbecilidade da inveja dos outros corpos
racionalidade.
coisas e uma profunda amargura ao prever o sofrimento das fotografias progressivamente
mais baças.
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
Efeito Borboleta
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
O Acidente
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
A Movimentação do Olhar
terça-feira, 11 de agosto de 2009
A Intenção Poética
Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
'Last Poem' - Fernando Pessoa
É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.
segunda-feira, 3 de agosto de 2009
Da Escola Cínica ao Cinismo Puro
domingo, 2 de agosto de 2009
a tarefa do escritor
sábado, 1 de agosto de 2009
Da Estética como Metafísica, da Filosofia como História (?)
quarta-feira, 15 de julho de 2009
Nas Fissuras
segunda-feira, 13 de julho de 2009
sempre
sábado, 4 de julho de 2009
Um dos Tempos
quinta-feira, 2 de julho de 2009
domingo, 28 de junho de 2009
Baco
Que toda a gente venha ver o lusco-fusco.
Eu morrerei mais à frente.
quinta-feira, 25 de junho de 2009
terça-feira, 23 de junho de 2009
A Solução Final
terça-feira, 16 de junho de 2009
O Impacto
quinta-feira, 4 de junho de 2009
segunda-feira, 1 de junho de 2009
da sociedade de classes
sexta-feira, 29 de maio de 2009
Questionamento Religioso
terça-feira, 26 de maio de 2009
O rei desconstrói, sorrindo.
sábado, 23 de maio de 2009
A Redução do Riso 2
A Krapp
A minha memória gravada, (solidão de quem recorda
sem se lembrar), entoa a minha voz apagada,
enquanto eu, preso a um fio rompido, bebo à minha loucura
de ser estrume. E escorrego nele, de face calada,
rememorando os obtusos anos
da minha procura.
Suspendo o fio, adianto, regresso e
grito nos intervalos da lembrança
e contra-digo o discurso que digo;
os aniversários enfadam-me, o amor cansa,
eu fui porcaria jovem e a minha aurora
um castigo.
Nessa caixa número três, na quinta bobina,
rodam os anos magoados,
e eu bebo sozinho e amaldiçoo toda a minha história;
para mais tarde, vencido, de olhos tão fechados,
que se abrirão vazios, escutar abraçado o silêncio
da minha memória.
terça-feira, 19 de maio de 2009
"L´Envoi"
Os romances que estudámos não vos ensinarão nada que possais aplicar aos problemas óbvios da vida. Não ajudarão no escritório, nem no exército, nem na cozinha, nem no jardim-escola. De facto, os conhecimentos que tentei partilhar convosco são puro luxo. Não vos ajudarão a compreender a economia social da França nem os segredos do coração de uma mulher ou de um homem. Mas talvez vos ajudem, se acompanhastes os meus ensinamentos, a sentir a pura satisfação que uma obra de arte inspirada e precisa transmite; e esta sensação de satisfação dará por sua vez lugar a um sentimento de verdadeiro consolo mental, o consolo que se sente quando se toma consciência, apesar de todos os seus equívocos e enganos, de que a textura interior da vida é também matéria de inspiração e precisão.
domingo, 3 de maio de 2009
quinta-feira, 23 de abril de 2009
O Tombo
I. Uma queda principia
Caía a grande velocidade, sem nunca conseguir ver, naquele instante de tempo, alguma das pedras que saltavam e rodavam com o impacto do seu corpo no terreno poeirento e duro, caía e, por entre os trambolhões repetidos, perguntava-se o porquê daquele tombo, daquela queda vertiginosa, não sabia se o haviam empurrado nem sequer de onde tinha caído, se lhe perguntassem de onde tinha vindo, qual era a sua história, ele responderia que não tinha noção de algum dia ter vivido antes destes trambolhões. O seu corpo era enrolado por forças que se sabe existirem mas que raramente se experienciam daquela forma, velocidade aliada a gravidade e uma tremenda de uma queda mal caída, de beiço no chão, sem aviso prévio nem um instante para se poder preparar, nada, tombou logo ali, naquele momento em que, procurava lembrar-se enquanto rebolava pela terra fora, tinha ou não sido empurrado. E se tinha, de facto, sido empurrado, quem o havia feito? Porquê? Buscava na sua memória qualquer rolo perdido onde tal pessoa pudesse figurar, mas não se conseguia lembrar do tempo anterior ao tombo. Nasci aqui, pensou, nesta queda, deste tombo, porventura encontrando, se tal era possível, algum sentido para a existência concretizada através de um trambolhão. E, no entretanto, continuava a rebolar, parecia interminável o movimento, as moções circulares repetidas desmedidamente. O seu corpo impactado contra o chão era festim para as pedras e a sua cabeça, de cada vez que batia no chão, doía-lhe por todas as anteriores. Era um sofrimento que não acabava. E ele sem lembrar-se de nada. Por sorte, chamemos-lhe assim, um pedregulho mais consistente no caminho chocou com a sua cabeça, ou o contrário, e houve uma espécie de flashback, um instante demorado de imagens, de passado, quem saberá, de pessoas, de espaços, de vida.
quinta-feira, 16 de abril de 2009
Do Amor e da Morte
- Esperava por ti, se quisesses.
Baixou os olhos. Sorriu triste:
- Nem vais ao menos à camioneta, querido?
Ele fez-lhe que sim com a cabeça.
Mas não foi. Ficou especado atrás do estore, seguindo-a com a vista a atravessar a praça, lá em baixo. Depois vestiu-se à pressa e pagou o quarto. Não quis o troco, que diabo, atirou-se pelas escadas estreitas a toda a pressa, e só parou cá fora, na esplanada.
- Uma aguardente velha. Copo grande.
O rádio transmitia uma cançoneta e fazia ruídos. Uma cançoneta francesa, parece que era.
- Está bem assim?, perguntou o criado, a apontar o cálice vazio.
- Está bem, qualquer coisa. A que horas é a camioneta?
- Agora parece-me que só lá prás dez. Dez, dez e tal.
O criado serviu a aguardente. Ia a afastar-se quando o rapaz o segurou pelo braço, esvaziando o cálice duma golada.
- Dez horas, disse?
- Sim. Não sei bem a hora certa a que ela parte mas lá dentro já me dizem.
- Espere. Deixe, não vale a pena. Obrigado.
- Mas não me custa nada, senhor. Há um horário lá dentro, no balcão. Outro cálice?
- Deixe lá, não vale a pena perguntar. O que há-de ser agora? Madeira. Tem vinho da Madeira?
- Não sei, senhor. Mas não poderá ser Porto?
- Está bem, seja o que for. Traga então Porto.
- Cálice grande, não é assim?
- Sim, cálice grande.
Acendeu um cigarro e olhou à volta, as cadeiras, as mesas de ferro, o hotel à esquina do passeio, e a janela do quarto do primeiro andar. Os olhos ficaram-se-lhe ali, naquele estore verde ainda corrido, nas paredes peladas à volta das vidraças.
E quando o criado voltou, disse-lhe para não deitar, tapando o cálice com a mão.
- É Reserva. Muito forte, faça favor de ver.
O homem continuava a apontar o rótulo da garrafa mas ele nem sequer o olhou.
- O senhor experimente que vai ver. Reserva, com mais de dez anos de casa e muito mais forte que o Madeira. Faz favor...
- Não. Leve isso. Traga-me antes um café quente.
Parecia recitar, falando sem despegar os olhos do outro lado da praça. Olhava a janela e tinha o cigarro esquecido nos dedos.
- Um café forte, continuou. Preciso de ter a memória viva...
Virou-se, mas o criado já ali não estava.
- O médico foi claro. Havia um relógio na secretária e olhei as horas. Eram cinco precisas. Estava calmo e reparei. Tenho dois ou três meses no máximo. O tempo contado dia-a-dia. É extraordinário como tudo agora me parece diferente. Mais belo talvez. Creio que vou viver agora mais intensamente. Dia-a-dia. E três meses no máximo.
- Espera! Três meses como? - disse a rapariga, subitamente iluminada.
Pôs-lhe a mão no braço e olhava-a fixamente. Ele olhou-a também e ambos ficaram a tentar entender-se em silêncio. Depois ela tirou a mão do braço do rapaz e acendeu novo cigarro. O sol escorria do alto e inundava-lhe agora a mesa toda. O rapaz tomou o copo e bebeu um gole devagar.
- Diz outra vez - repetiu a rapariga - Deixa-me entender. Diz outra vez, para entender tudo muito bem.
- Tu vais dizer que tudo isto é estúpido e eu sei bem que é. Mas se a gente pensar bem, a estupidez é só nossa.
- Sim. Mas explica tudo muito bem. Desde o princípio. Devagarinho.
- A estupidez é só nossa, porque a vida não é verdade. Mas é a única coisa em que se acredita - disse o rapaz.
- Sim - repetiu a rapariga - Mas era bom que explicasses desde o princípio. Devagarinho. Para eu não acreditar também. Está um dia cheio de sol.
- Mas a explicação é simples - disse ele, balouçando o líquido no fundo do copo. Eu vou explicar tudo. Eu vou.
Estava uma tarde cheia de sol. As águas brilhavam até ao limite do horizonte, um barco à vela ia passando pela estrada de lume. O ar estava quente. E a brisa do mar quase não chegava ali.
terça-feira, 7 de abril de 2009
sábado, 21 de março de 2009
Depois do Fim o que fica?
A Herberto Helder
Este é o tempo da carne:
o tempo de um esplendor de esferas
circulando em volta de um sol sem núcleo.
E a sua matéria faz-se num fogo que arde ao ver-se
num vazio sem oxigénio.
E desce à terra, colhendo frutos que são pedras.
Cá em baixo, abate-se sobre os tectos
uma sombra branca de insónia,
que reflecte os raios desse sol,
rasgando a substância ao invés de a queimar.
Tal é a força do tempo da carne,
Que dilacera os corpos com fausto.
E, num momento, o mundo cessa, suspende-se,
preso sem horas nem espaço.
No fim desse fim, resta apenas um
poema que luta contra o tempo e a carne,
feito de palavras que dormem o silêncio,
Tomando a destruição do mundo em seu regaço.